sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Posso ver você

- Hey, Carla, me desculpa por sábado, não deu para ir na sua festa, eu estava meio doente, sabe, fiquei com um pouco de febre e tal... Carla? Carla? Sério que você não vai falar comigo só porque eu não fui na sua festa? Tá, eu sei que você mudou o dia da festa por minha causa, mas eu não tenho culpa, né? Não tinha como eu adivinhar que ia ficar meio mal e... Carla??
- É triste, não é?
- Hã? Ah, oi, senhor Donizete. Não tinha visto o senhor aí. O que é triste?
- Ser invisível.
- Ah, o que? A Carla? Bom, acho que ela está brava comigo por eu não ter ido à festa, mas eu sei que é temporário, logo, logo ela vai estar falando comigo outra vez, o senhor vai ver.
- Eu espero que sim, meu rapaz, você não ia gostar de ser invisível como eu.
- Do que o senhor está falando? Eu estou vendo o senhor bem aí!
- Bem, olhe ao seu redor. Quantas pessoas estão neste colégio agora? Umas 300? 400? Sabe quantas delas sabem meu nome, rapaz? Posso contar nos dedos das mãos. Acho que nem o diretor sabe meu nome. Para ele, eu só sou o faxineiro. Se eu morrer e outro faxineiro vier no meu lugar, ele provavelmente nem vai notar.
- Mas os alunos não te cumprimentam todos os dias? E os professores?
- Não, você é um dos únicos. Talvez por isso você esteja me vendo agora. Para todas as outras pessoas, eu vou invisível.
- Desculpe, senhor Donizete, mas isso não faz o menor sentido para mim... por que o senhor acha que é invisível? O senhor.... morreu e virou fantasma? Ai, meus deuses, eu estou vendo gente morta??
- Pior, muito pior do que isso, rapaz. Há gente morta que continua viva e gente viva que ninguém vê. Está vendo aquela menina de cabeça baixa sentada ali naquele canto? Você a conhece?
- Ahm... acho que ela é da minha turma de artes, mas eu nunca falei com ela... O nome dela é... Jéssica? Joana? Alguma coisa com J... Janete! Acho que é Janete! O que tem ela?
- Há quanto tempo vocês estudam juntos? Por que você nunca falou com ela?
- Bom, eu não sei, talvez desde sempre, acho, eu realmente não me lembro. E eu nunca falei com ela porque... sei lá, não tem nenhum motivo, acho. Simplesmente não falei, ué.
- Você nunca falou com ela porque ela era invisível para você até agora. Você só a está vendo neste momento porque eu a mostrei para você.
- Estranho, ela parece estar triste, chorando...
- Sim, ela está triste porque também é invisível.
- Senhor Donizete, esse papo parece mesmo coisa de gente louca. Eu estou vendo a menina bem ali agora mesmo!
- Ontem foi o aniversário dela. Ela, o namorado e alguns amigos, os poucos que ela tem, se juntaram na lanchonete na frente da escola depois das aulas. Ela achou que eles estavam indo lá para comemorar o aniversário dela, mas ninguém lembrou da data. Nem o namorado! Ele e os amigos passaram a tarde toda mexendo no celular, falando com outras pessoas que não estavam ali. Ninguém notou a presença dela. Ela se tornou invisível.
- Puxa, isso deve ter sido triste. Mas, por que ela não ficou brava? Por que não brigou com o namorado e deu uma bronca nele? E como o senhor sabe disso tudo?
- Porque agora que ela está invisível, eu consigo enxergá-la. Eu sei exatamente como ela se sente, eu passo por isso todos os dias.
- Existem outros? Digo, outras pessoas invisíveis por aqui? (Estou me sentindo meio louco por perguntar isso, mas estou ficando realmente curioso...)
- Por que você mesmo não descobre? É só olhar ao seu redor. Procure pessoas que estão sozinhas, ou melhor, pessoas que ninguém vê. Porque, sabe, você pode estar cercado por uma multidão e ainda assim ser invisível.
- Tipo aquele cara ali? Aquele grandão jogando futebol com os outros garotos. Parece que ninguém passa a bola para ele!
- O que você sabe sobre ele?
- Quase nada, eu acho. Se não me engano ele era do time de basquete da escola alguns anos atrás, não era?
- Sim. E o time dele perdeu a final do campeonato escolar três anos atrás porque ele errou uma falta no último segundo do jogo. Todo mundo o culpou por isso. Ele próprio se culpou por isso. Desde então, ele tem desaparecido aos poucos. Ele chegou a tentar suicídio ano passado. Nem isso adiantou. O psicólogo receitou calmantes e mãe achou que era só frescura de adolescente. Ninguém parece realmente se importar.
- Senhor Donizete, o senhor acha que eu vou acabar ficando assim só porque eu não fui à festa da Carla? Quero dizer, era só uma festa boba, né? Ela não pode me ignorar para sempre por isso, eu acho!
- E quanto a todas as vezes em que você promete aos seus amigos que vai sair com eles e depois arranja alguma desculpa estúpida para não ir? Você acha que assim vai conseguir mais atenção deles, mas você está fazendo tudo errado!
- Do que o senhor está falando? Como o senhor sabe disso??
- Esta é uma das vantagens de ser invisível, provavelmente a única. Sobra-nos muito tempo para observar outras pessoas, para desejar ser como elas e ter a chance de ser visto. Você, meu rapaz, tem a sorte de ter muitos amigos. Não se torne invisível. Não adianta apenas dizer que está com saudades se você nunca tem tempo para estar com eles. Palavras, presentes, nada disso vale coisa alguma se você não der a eles o que tem de mais precioso: tempo. Você não se torna invisível porque ninguém te vê, mas porque ninguém te escuta, porque ninguém se preocupa. Se você quer ter a atenção de alguém, experimente ouvir ao invés de falar. Sentir ao invés de pensar. Ser ao invés de estar. Quanto mais do seu tempo você doar, mais vai receber em troca.
- Eu... acho que entendi. As pessoas só enxergam quem é igual a elas. Se eu tratá-las como alguém invisível, é assim que elas vão me tratar também. Senhor Donizete, quando é o seu aniversário?
- Hã? Meu aniversário? Nem me lembro quando foi a última vez que alguém me perguntou isso... bem, é depois de amanhã. Mas, por que a pergunta?
- Me aguarde, senhor Donizete! O senhor vai ver!
- Como assim, rap... hey, rapaz, volte aqui!
- Depois de amanhã, senhor Donizete! Me aguarde! Até mais!

(Dois dias depois...)

- SURPRESA!!!!
- Mas, o que??? O que é isso, Daniel?? O que são todas essas bexigas e esses lençóis e...QUATRO BOLOS?! Que festa é essa????
- Bom, Carla, eu queria me desculpar por não ter ido a sua festa. Eu estava mesmo um pouco gripado, mas eu confesso que acabei não indo mais por preguiça do que por causa da gripe. Então preparei essa festa à fantasia para me redimir. Você me perdoa?
- Hã, sim, claro... mas eu não entendi o motivo da decoração ser sobre fantasmas... ainda não estamos no Halloween! E você também não acha que exagerou na quantidade de bolos?
- Bem, essa é outra coisa que você vai ter que perdoar... a festa também é para mais três pessoas...
- Daniel, eu vi seu recado para te encontrar aqui na quadra, mas eu... o que é isso, cara??
- Oi, Pedro! É Pedro o seu nome, certo? O cara que fez nossa escola chegar ao vice-campeonato estudantil três anos atrás! Foi sem dúvida um grande feito! Eu sou seu fã, cara, você bem que poderia me dar umas dicas de como jogar basquete tão bem quanto você! Essa festa é para você também! Para a gente comemorar o aniversário do mais bem sucedido time de basquete que essa escola já teve! Parabéns, cara! Olha só, o bolo com o desenho da taça é o seu, ok?
- Ma.. o que? Hã...
- Bem, a gente já já corta os bolos e começa a festa, só estou esperando meus últimos dois convidados! E olha quem está aí! Olá, Janete! Obrigado por me ajudar com a ideia para a decoração da festa, tenho certeza de que você vai ser uma ótima designer muito em breve! O seu bolo é aquele ao lado do vaso de rosas, tá?
- MEU bolo? Essa festa é para mim também??
- Sim, claro, seu aniversário foi esses dias, não é? Eu falei com o seu namorado e combinei com ele para a gente comemorar o seu aniversário e o da Carla juntos, já que aparentemente nós dois estávamos em falta com vocês duas.
- Oi, amor! Me perdoa por ter esquecido seu aniversário? Eu sei que vou um péssimo namorado, mas eu prometo que nunca mais vou ficar pendurado no celular quando sair com você. E se eu fizer isso, pode tacar o celular na minha cabeça, eu vou merecer!
- Senhor Daniel! Possa saber que bagunça é essa na minha escola? Quem autorizou essa festa na quadra?
- Diretor Silva! Que bom que o senhor veio prestigiar nossa festa! Eu tentei falar com o senhor ontem, mas me disseram que o senhor não tinha tempo para conversar com alunos inconvenientes como eu. Aí eu pensei: bem, ser diretor deve ser mesmo muito estressante. Talvez uma festa ajude a melhorar os ânimos aqui na escola!
- E quem vai limpar essa bagunça toda depois, posso saber?
- Eu, oras! Com a ajuda de todos os alunos também, eu espero! Não seria justo deixar todo o lixo para o senhor Donizete limpar sozinho, certo?
- Senhor Donizete? Quem é esse??
- Então o senhor não sabe mesmo... bem, diretor Silva, eu te apresento o senhor Donizete, faxineiro da escola há mais de 20 anos! Hoje é aniversário dele e eu queria pedir a todos os presentes que cantem parabéns para ele! Senhor Donizete, o último bolo é para o senhor!

E apesar da cara de embasbacado do diretor Silva e da surpresa de todos os presentes, aquela foi a melhor festa que a escola já teve. No dia seguinte e em muitos e muitos dias depois, todos falaram sobre ela. E as pessoas passaram a se conhecer melhor. E aprenderam os nomes umas das outras. E passaram a se ver e a ouvir umas às outras - pessoalmente e não pelo celular! Nosso pequeno herói Daniel fez as pazes com sua amiga Carla, que futuramente seria sua namorada. Janete realmente jogou o celular na cabeça do namorado quando este se esqueceu da promessa um mês depois... ela terminou com ele e agora namora com Pedro. E o senhor Donizete? Bem, ele hoje recebe tantos “bom dia” que até o prefeito da cidade teria inveja! E nunca mais ninguém ali desapareceu misteriosamente, sumindo aos poucos até ficar invisível...

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