sexta-feira, 26 de setembro de 2014

2 colheres de felicidade - I

Não, não estava sendo fácil. Ana cumprimentava cada cliente com cortesia e um sorriso no rosto, mas por dentro a angústia queimava como lava. Além de todas as preocupações das últimas semanas, a escola de sua filha Beatriz havia telefonado e pedido para que alguém fosse buscá-la. Aparentemente ela tinha se envolvido em uma briga com um coleguinha e acabara se machucando. A doceria estava completamente cheia de clientes e Pedro, seu ajudante, seu braço direito, não tinha ido trabalhar naquele dia – tinha pegado conjuntivite e seria obrigado a ficar em casa por uns dias. E para completar aquele dia interminável, era dia de fechar as contas do mês e pagar os funcionários. Ana não poderia abandonar a loja assim do nada.

Beatriz nunca havia brigado com ninguém. Sua filha de 6 anos era uma criança cheia de energia, inteligente, observadora, carinhosa. Por que ela havia feito uma coisa dessas tão de repente? E logo hoje? Ana estava prestes a ter um colapso nervoso quando se lembrou de dona Rute. Sua vizinha era uma senhora que beirava os 70 anos, professora recém-aposentada e sua melhor conselheira desde que ela havia se mudado para a casa ao lado, logo depois que Beatriz nasceu. Ligou para a vizinha e perguntou se ela poderia pegar Bia na escola e ficar com ela até que conseguisse fechar a doceria hoje. Dona Rute respondeu que faria isso com prazer, ela cuidaria do machucado e depois ela e Bia tomariam chá da tarde juntas, Ana não precisaria se preocupar.

“Quem dera isso fosse verdade...” – Ana pensou. Mas apenas agradeceu e voltou aos seus afazeres no trabalho.

Sua última cliente naquele dia foi uma moça loira, de cabelos encaracolados e óculos. Tinha por volta de 20 anos e segurava vários livros na mão. Ana saiu de trás do balcão e foi ajudá-la a levar o café e o bolo de laranja até uma mesinha perto da janela. A doceria não tinha garçons, normalmente os próprios clientes pegavam os doces no balcão e levavam para as mesas, mas Ana ficou com medo de que a menina não conseguisse carregar tudo sozinha com todos aqueles livros e se dispôs a ajudá-la.

A loja já havia fechado há mais de meia hora, mas a menina continuava lá, escrevendo alguma coisa em um papel, tão concentrada que nem percebeu que os funcionários já estavam limpando e guardando todas as coisas, se preparando para irem embora. Ana nunca cometeria a indelicadeza de pedir para um cliente se retirar, mas não conseguiu evitar fazer o trabalho burocrático naquele mesmo momento. Havia muitas contas para fechar, estoque para conferir, fornecedores para ligar, funcionários para pagar. Ana era uma doceira de mão cheia, sempre gostou de cozinhar. Contudo, não entendia absolutamente nada sobre administração, marketing ou direitos trabalhistas. Seu marido Roberto era quem sempre cuidava disso tudo. Todos diziam que eles eram um casal perfeito, um completava o outro, eram uma família como aquelas nos comerciais de margarina.

Mas um mês atrás, tudo terminou. Um dia de chuva, um motorista de caminhão com sono e a vida de Ana tinha mudado para sempre. Roberto se fora. Perder seu marido em um acidente, ter que cuidar sozinha de uma filha pequena e ainda aprender a administrar um pequeno negócio, aberto há pouco mais de 6 meses, não estava sendo fácil. Muitas vezes Ana tinha vontade de simplesmente abandonar tudo. Mas então pensava em sua filha e em todo o trabalho duro de seu marido para abrir a doceria e decidia que tinha que haver um jeito, ela não desistiria.

Tanto Ana quanto Roberto eram filhos únicos – o que significava que a pequena Beatriz nunca teria tios ou primos. Os pais de Ana já haviam falecido quando ela se casou e os pais de Roberto moravam em outro estado e só vinham visitá-los uma ou duas vezes por ano. Não havia parentes por perto com quem ela pudesse contar quando os problemas se agravavam.

Perdida em seus pensamentos, Ana não percebeu quando a garota loira foi embora. Terminou seus afazeres, dispensou as duas atendentes e seu ajudante de cozinha e disse a eles que ela mesma limparia a última mesa e lavaria o que tinha restado da louça. Já estava tarde e Ana não gostava de pedir para seus funcionários fazerem hora-extra. Ligou para Dona Rute para saber se Bia estava se comportando e se desculpou por ter que deixá-la lá por mais tempo do que havia previsto. A vizinha lhe garantiu que estava tudo bem, as duas estavam preparando almôndegas para o jantar e Bia estava se divertindo tanto, imitando a mãe como cozinheira, que nem se lembrava mais do machucado no joelho.

Ana se acalmou um pouco e foi recolher a louça da última mesa. Quando levantou o prato do bolo, um pequeno papel dobrado caiu no chão. Ela se abaixou para pegá-lo e inevitavelmente leu o título: Receita para a felicidade. Sua curiosidade foi mais forte e ela abriu o papel para ler o resto do texto. Ele dizia mais ou menos assim:

Para ser feliz, você vai precisar de:

- 1 xícara de bons amigos, daqueles que lhe dão bons conselhos, mesmo quando você não quer ouvi-los;
- 2 colheres de pessoas que lhe amem de verdade, incondicionalmente;
- 1 pitada de gentileza, para adoçar a vida;
- 1 dose de paciência, ela faz toda a diferença;
- Perseverança à vontade. Quanto mais, melhor.

Misture tudo e deixe seu sonho crescer. Se não der certo na primeira vez, tente de novo. Experimente colocar mais perseverança. Sempre funciona!

PS- Ana, obrigada por deixar meus dias mais doces, tanto com seus produtos quanto com seus sorrisos. O mundo seria um lugar muito incrível se mais pessoas gentis como você morassem nele. Se bem que aí ele seria o paraíso, não a Terra! Da sua cliente mais fiel para sempre!
PPS- Vai dar tudo certo, eu tenho certeza!

Ana estava estupefata! Ela se lembrava de ter visto a menina loira algumas vezes antes, mas nunca imaginou que ela, ou qualquer outro cliente, se importaria com a dona de uma pequena loja o suficiente para escrever um bilhete tão bonito. Como ela teria percebido que Ana precisava tanto dessas palavras hoje? Sem perceber, lágrimas começaram a correr por seu rosto. Há quanto tempo ela não chorava? 30 dias, exatamente 30 dias. Desde que tivera que contar à filha que o pai não voltaria mais, Ana tinha se comprometido a ser forte e a não deixar que ninguém a visse chorando. Ela tinha coisas mais importantes a fazer do que se deixar levar por sentimentalismo. Pelo menos era o que ela havia pensado antes. Porém agora, sentada no chão da doceria, sozinha, ela se permitiu colocar para fora tudo o que tinha aguentado até então. Ana chorou. Soluçou. Reviu tudo o que havia acontecido naquelas semanas de um jeito diferente. Então se acalmou. Respirou fundo, enxugou as lágrimas, se levantou e foi lavar o rosto. Quando se olhou no espelho, não foi a doceira ou a mulher de negócios que ela viu. O que ela enxergou foi uma mulher que merecia ser feliz, alguém que ainda merecia ser amada e reconhecida. Sorriu. Não o sorriso que se obrigava a dar aos clientes mesmo nos seus piores dias. Não, aquele era um sorriso de verdade. Pela primeira vez em muito tempo. Fez uma anotação mental para se lembrar de agradecer ao seu novo anjo da guarda, a menina loira com jeito de intelectual. Voltou à mesa, lavou a louça, apagou as luzes e fechou a loja. Hora de ir para casa.

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