sexta-feira, 26 de setembro de 2014

2 colheres de felicidade - III

No dia seguinte, Ana foi à escola de Beatriz mais cedo, para tentar conversar com a professora Kelly.

- Ana! Que bom que você conseguiu vir hoje, eu queria mesmo lhe explicar sobre ontem.
- Sim, dona Rute me disse mais ou menos o que aconteceu. Eu já tinha ouvido falar sobre o Miguel, mas acho que dessa vez o caso foi um pouco mais grave, não?
- Está sendo bem difícil lidar com ele ultimamente. A diretora Paula chegou até a pensar em expulsá-lo, mas a professora Tereza, nossa psicóloga, e eu concluímos que isso não o ajudaria em nada e ainda poderia ser ruim para a escola, já que os pais dele são pessoas muito influentes.
- Desculpe-me, mas que tipo de ajuda exatamente ele precisa? Achei que a segurança dos outros alunos que convivem com ele é que deveria ser prioridade!
- Sim, claro, já montamos um esquema de guerra para que ele não se meta em nenhuma briga outra vez, todos os funcionários foram instruídos a ficarem de olho nele no intervalo. Mas, entenda, esse é o motivo pelo qual eu a chamei aqui. Normalmente nós não falamos sobre isso abertamente com outros pais, mas acho que você merece saber que tipo de menino ele é. Bem, como disse antes, ele é filho de pessoas influentes. Chega todo dia aqui com roupas, brinquedos e materiais novos. Então quem não o conhece pode pensar que ele é apenas um garoto mimado que não conhece limites, certo? Que pensa que pode fazer o que quiser e nada acontecerá a ele porque os pais vão protegê-lo, não é? Pois eu lhe digo que é justamente o contrário. Os pais dele nunca vieram a uma reunião. Até na hora de fazer a matrícula, é algum funcionário da casa quem traz uma procuração. A professora Tereza já conversou com ele diversas vezes. Ele se faz de durão, mas no fundo é apenas uma criança tentando conseguir atenção. Pelo que descobrimos, os pais sequer conversam com ele! É sempre a cozinheira ou o motorista dos pais quem compra as coisas para ele. Ele foi criado pelos empregados desde que nasceu, não tem noção de família.
- Mas isso é monstruoso! E não há nada que possa ser feito?
- Normalmente nós entramos em contato com o serviço social quando desconfiamos de maus tratos contra algum aluno, mas esse caso é diferente. Ele sempre está bem arrumado, com roupas novas, bem alimentado, ele tem tudo que o dinheiro pode comprar. E ele não apanha dos pais, nem sofre qualquer tipo de tortura, exceto, talvez, o pior tipo que existe: a indiferença. Seria muito difícil conseguir tirá-lo dos pais e nós nem sabemos se ele realmente quer isso. Consegue entender? Não sabemos o que seria pior.
- Entendo, mas... bem, os outros alunos não podem continuar sofrendo bullying calados, não acha? Eu não vou deixar que minha filha chegue em casa machucada outra vez!
- Não vai acontecer, eu prometo. Ontem depois da briga, o Miguel foi chamado na sala da diretora Paula e ela e a professora Tereza conversaram com ele. Eu reuni o resto da turma e também tive uma conversa séria com eles, tão séria quanto é possível com crianças nessa idade. Nós três decidimos fazer um trabalho de interação com a turma, ajudá-los a trabalhar melhor em equipe. Mostrar que eles precisam se dar bem uns com os outros se quiserem alcançar um objetivo. Sim, nós mandamos um bilhete na agenda do Miguel, mas, por experiência própria, acho pouco provável que isso vá surtir algum efeito. Vamos ter que nos virar sem a ajuda da família dele se quisermos resolver isso ainda esse ano.
- Eu fiquei de ter uma conversa com a Bia hoje à noite, mas agora nem sei bem o que eu deveria dizer a ela. E esse aluno novo? Como ele é?
- Ele ainda está muito tímido, ainda mais depois de tudo o que aconteceu. Mas parece que a conversa de ontem serviu para alguma coisa, os outros alunos já estão tentando puxar papo com ele, então acho que vai ficar tudo bem. Miguel também pediu desculpas a ele na frente de todo mundo, acho que por um lado ele odiou passar vergonha outra vez, mas por outro foi bom para ele saber que alguém se importa o suficiente para pelo menos corrigi-lo quando ele faz algo errado. Vamos ter que esperar para ver como ele vai se comportar hoje, não é?
- Bem, fico um pouco mais aliviada por saber que algumas providências já foram tomadas. Se houver qualquer outra coisa que eu possa fazer para ajudar, por favor, não deixe de me avisar.
- Que bom que você entendeu, Ana. Eu sei que as coisas não devem estar sendo fáceis ultimamente, mas você tem a sorte de ter uma filha maravilhosa! A Bia é muito querida aqui na escola e ainda é uma excelente aluna!
- Ah, sim! Por falar nisso, dona Rute me contou que ela já sabe ler, eu pensei que a turma ainda estivesse sendo alfabetizada.
- Você não sabia? A Bia já entrou na turma sabendo ler! Ela ainda tem um pouco de dificuldade com a letra cursiva, mas lê e escreve perfeitamente em letra de forma! Parece que todas aquelas leituras antes de dormir fizeram milagres!
- Eu tenho um pequeno gênio em casa e não sabia? Eu devo ser mesmo uma mãe muito desnaturada!
- Muito pelo contrário, Ana! A Bia sempre desenha você como uma super-heroína! Você é a pessoa que ela mais admira no mundo. Talvez seja por isso que ela e o Miguel vivam brigando, acho que ele tem um pouquinho de inveja por ela ter uma mãe tão atenciosa.
- Puxa, assim eu fico até sem graça. Mas, obrigada, professora Kelly. Eu tenho que ir agora, estou atrasada para abrir a doceria e acho que seus alunos já devem estar esperando na fila.
- Nossa, é verdade, preciso correr! Mais uma vez obrigada por ter vindo conversar comigo, dona Ana!
- Eu é que agradeço! Bom dia! Até mais.

O dia na doceria foi corrido como sempre, mas dessa vez não ocorreu nenhuma surpresa, agradável ou não. Ana passou o dia prestando atenção nos clientes, queria ver se a menina loira iria aparecer, ela queria agradecer pelo bilhete da noite anterior, mas infelizmente ela não compareceu. Ana foi para casa pensando na conversa que ela teria com a filha e se perguntando se Pedro já estaria bem o suficiente na segunda-feira. Ela teria uma reunião com o advogado que estava cuidando da papelada do marido e ficaria mais tranquila se soubesse que Pedro estaria lá para cuidar da doceria na ausência dela. Talvez ela devesse promovê-lo a gerente. Ela e o marido já haviam conversado sobre a possibilidade de torná-lo vice-gerente para que ele ficasse encarregado da loja quando Roberto precisasse ficar fora da loja por qualquer motivo. Mas agora Ana teria que aprender a administrar a loja antes de fazer qualquer grande alteração em seu funcionamento. Ela precisava ser cuidadosa, já que agora ela era a única pessoa com quem a filha poderia contar. Qualquer deslize e as duas estariam bem encrencadas.

- Uma dose de paciência e muita perseverança, acho que era isso que dizia a receita, não é?
- Você está falando sozinha, mamãe?
- Boa noite, filha! Como foi na escola hoje? Você e o Miguel não brigaram outra vez não, né?
- Nós não brigamos, mamãe! Ele ficou me olhando feio o dia todo, mas eu nem liguei, fingi que nem era comigo!
- Filha, o que foi que você disse para ele ontem para ele querer te empurrar?
- Eu só disse a verdade, mamãe! Disse que ele era tão metido e chato que ninguém gostava dele, nem a mãe dele! Os meninos só fingem que são amigos dele porque ele tem brinquedos legais que ninguém mais tem, mas quando ele está longe eu sempre ouço todo mundo falar que ele é muito chato!
- Ai, Bia... olha, eu sei que eu disse que a gente nunca deve mentir, mas a gente também precisa tomar cuidado com o jeito com que nós dizemos a verdade!
- Ahm? Como assim?
- Pode até ser verdade que ninguém goste dele, mas não é fácil para ninguém ouvir esse tipo de coisa, entende? Tenta se colocar no lugar dele, como você se sentiria se alguém dissesse isso para você?
- Eu ia dizer que é mentira, ué! Eu tenho um monte de amigos na escola, até as tias gostam de mim!
- Sim, mas e se você fosse ele e ninguém gostasse de você? E se a sua mãe nunca aparecesse na escola, nem nas reuniões, nem nas festinhas, você não ficaria triste?
- Eu ficaria muito, muito triste, mamãe! Mas, também, quem manda ele ser tão chato?
- Bia, eu acho que ele não quer ser chato de propósito, entende? Mas se ninguém quer ser amigo dele de verdade, ele acaba tendo que chamar a atenção de outras maneiras. Você já experimentou conversar com ele sem brigar? Uma vezinha só?
- Mas ele não gosta de mim! Acho que ele não gosta de ninguém!
- Talvez ele só seja assim porque acha que ninguém gosta dele também. Vamos fazer o seguinte: algum dia quando ele estiver sozinho no intervalo, vá lá falar com ele. Mas com muuuuita calma, está bem? Tenta descobrir do que ele gosta ou quando é o aniversário dele ou qualquer coisa assim. Talvez se ele perceber que você não quer brigar com ele, ele também pare de querer brigar com você!
- Mas eu já sei essas coisas, mamãe! O aniversário dele é semana que vem, na quarta-feira! E ele gosta de um desenho chamado T-Rex 20, todos os meninos gostam desse desenho! Ele sempre leva os bonequinhos dele na escola, por isso que os meninos deixam o Miguel brincar com eles.
- Ah, é? E como você sabe que o aniversário dele é semana que vem? Vai ter festinha?
- Eu sei porque a gente tem um calendário com os aniversários de todo mundo na nossa sala, ué. A cozinheira do Miguel sempre manda um bolo para ele, mas é só também. Nem tem comparação com os bolos que você faz, mamãe! As minhas festas de aniversário na escola são sempre as melhores, todo mundo elogia seus doces!
- Uhm... e se a gente fizesse um bolo do T-Rex 20 para o Miguel e mandasse entregar na escola no dia do aniversário dele, você acha que ele ia gostar?
- Ah, ele ia amar, com certeza! Ele nunca teve um bolo de verdade no aniversário dele! Mas, mamãe, eu não quero que ele saiba que foi você que fez o bolo, ele vai achar que eu quero ser namorada dele, eca!
- Hahaha! Namorada? Não acha que vocês ainda são muito novinhos para namorar, não, dona Beatriz? Bom, eu acho que seria mais legal mesmo se fosse uma surpresa! Você me ajuda? Eu faço o bolo, mas você vai ficar com as missões mais difíceis, ok?
- Eu posso ajudar? Ebaaaaa! Missão secreta: bolo do dinossauro maluco! O que eu tenho que fazer, mamãe?
- Bom, primeiro, eu tenho que saber como é esse T-Rex 20, né? Você consegue uma foto dele para mim?
- Facinho! Vou pegar as revistas, sempre tem propaganda dos bonequinhos do T-Rex 20 nelas! Deixa eu ver... tem esta aqui e... não! Esta está melhor! E está bem grande, mamãe! Acho que esta serve para colocar no bolo!
- Uau, que rapidez, heim? Bem, a outra parte da missão é ultrassecreta, o Miguel não pode nem desconfiar, heim? E você só vai ter segunda e terça para fazer tudo!
- Estou curiosa! O que é que eu tenho que fazer, mamãe?
- Você vai ter que pedir para todo mundo da sua turma assinar o cartão de aniversário dele! Mas tem que falar que ninguém pode contar nada para o Miguel, heim? Se precisar, pede ajuda para a tia Kelly! Você acha que todo mundo consegue pelo menos escrever o próprio nome no cartão? Assim ele não fica sabendo de quem foi a ideia do bolo e não vai achar que você quer ser namorada dele!
- Mamãe, você é a melhor mãe do mundo! Que super-ideia a sua! Eu posso fazer eu mesma o cartão, o que você acha? Eu posso recortar os desenhos do T-Rex 20 das revistas e colar em um papel, aí eu deixo espaço para todo mundo escrever o nome embaixo. Você me ajuda a fazer isso amanhã?
- Ah, querida, essa era a outra coisa que eu tinha que te falar... Eu vou ter que ir para a doceria amanhã!
- Mas amanhã é sábado, mamãe! Não é o Pedro que fica lá aos sábados?
- Normalmente sim, mas ele está doente, Bia. Foi por isso que eu não consegui te buscar ontem na escola também.
- E eu vou ficar com quem?
- Ai... é tanta coisa que acabei nem pensando nisso ainda... acho que vou ter que ver se a dona Rut...
- Já sei, mamãe! Eu posso ir trabalhar com você! Ontem mesmo você disse que ia me deixar ir com você algum dia! Eu posso levar as revistas e fazer o cartão lá! Eu posso até fazer a minha lição de casa lá! E depois quando eu terminar tudo eu posso te ajudar na cozinha! Você me ensina a fazer biscoitos?
- Bia, eu não sei...
- Por favor, por favor, por favor! Eu juro que vou me comportar!
- Ah, querida, é que é muito tempo, eu tenho medo que você comece a ficar entediada, não vou poder sair no meio do dia para te trazer para casa!
- Eu não vou ficar entediada, mamãe! Eu levo meus livros e fico vendo as figuras e desenhando! Não vou pedir para voltar para casa mais cedo, eu prometo!
- Vendo as figuras? Bia, a tia Kelly me disse que você já sabe ler e faz tempo! Por que nunca me contou?
- Ah, era segredo, droga!
- Bia, mas isso é IN-CRÍ-VEL! Não vejo motivo para você não ter me contado antes!
- Ah, mamãe, é que eu gosto quando você lê para mim antes de eu ir dormir. E agora que você sabe que eu já sei ler, você nunca mais vai querer ler comigo...
- Oh, querida, não precisa chorar, não! É claro que eu vou continuar gostando de ler com você! Mas também é ótimo saber que você já consegue ler sozinha, porque isso significa que você pode ler muitas outras coisas que você quiser, mesmo quando eu não estiver com você! Acho que isso merece uma comemoração! Amanhã, depois que a gente fechar a doceria, vamos comprar um livro novo para nós duas lermos juntas! Eu leio um parágrafo e você lê outro, que tal?
- Quer dizer que eu posso ir na doceria com você amanhã?
- Sim, promessa é promessa, não é?
- YUPIIIII!!!! Eu te amo, mamãe!
- Eu também te amo, Bia! Agora já para o chuveiro! E depois arrume todas as coisas que você vai precisar para amanhã, heim? Caderno, livros, revistas, tesoura, cola, caneta... porque temos que sair de casa bem cedinho!
- Está bem, mamãe! Podemos ter macarrão para o jantar hoje?
- Ok, vou preparar uma macarronada para nós enquanto você toma banho. Espaguete à la dama e o vagabundo saindo!
- Você é a melhor mãe do mundo! Pena que o papai não está aqui, ele adorava sua macarronada!
- Seja lá onde ele estiver, ele tem muito orgulho de você também, filha! Mas agora chega de enrolar e vá já para o chuveiro!
- Estou indo, estou indo, estou iiiiiiiindoooooo...

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