sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Lilitown

O dia amanhecia preguiçosamente em Lilitown. Pouco a pouco, as casinhas do pequeno vilarejo perdido nas altas montanhas ganhavam cores e um aspecto de lugar feliz. Tudo parecia tranqüilo naquele reino esquecido pelos deuses e longe de qualquer lugar que se pudesse chamar de civilização.

Mas, olhando mais atentamente, podia-se perceber que Lilitown não era um lugar comum. A moça abrindo a janela para o sol entrar não tinha expressão nenhuma. O padeiro sovando a massa não tinha uma gota sequer de suor no rosto. A senhora idosa atravessando a rua não possuía nenhuma ruga em sua face. As crianças brincando no jardim não demonstravam nem alegria, nem tristeza. Todos em Lilitown usavam máscaras.

Não se sabe ao certo como essa tradição começou. Dizem as lendas que um dia, há muitos e muitos anos, Lilitown foi a morada dos deuses. Quando os primeiro humanos pisaram no solo sagrado, os deuses, enfurecidos, se mudaram para longe e jogaram sobre os habitantes do local uma maldição que faria com que seus rostos se tornassem tão completamente desfigurados que qualquer pessoa enlouqueceria ao ver a própria imagem. Desde aquela época remota então toda pessoa nascida no vilarejo recebia uma máscara ao nascer e assim vivia por todos os seus dias.

Jony Doe tinha nascido em Lilitown 14 anos atrás. Nunca tinha sequer parado para indagar o motivo pelo qual todas as pessoas que conhecia escondiam-se atrás de uma máscara. Isso era, para ele, tão natural quanto respirar.

Um dia, andando pelo bosque em torno do vilarejo, começou a discutir calorosamente com sua amiga Maisa sobre o sentido da vida. Isso era uma coisa realmente rara em Lilitown! As pessoas do lugar raramente se entregavam a conversas tão prolongadas e profundas. Todas as palavras ditas naquele local esquecido pareciam mais sussurradas do que realmente ditas com alguma convicção.

Mas adolescentes sempre se exaltam ao discutir algo que lhes interessa! E no calor da discussão, o improvável aconteceu: ao gesticular com mais veemência para mostrar a Jony sua opinião, a máscara de Maisa caiu! Por uma fração de segundo, Jony pôde ver o verdadeiro rosto de sua melhor amiga. Ela, envergonhada, correu para longe, com medo do que poderia acontecer se alguém soubesse o que havia se passado. Ele, no entanto, permaneceu estático. Estava chocado demais para se mover. Não porque o rosto de Maisa fosse tão deformado a ponto de imobilizá-lo, mas porque, ao contrário do que imaginou por toda a sua vida, ele era a coisa mais bela que já tinha visto.

Jony sentou-se na beira do lago e pensamentos diversos cruzaram sua mente. Aquela minúscula fração de segundo tinha tido o poder de mudar toda a sua vida! Ele se questionou sobre tudo que aprendera até aquele momento. E então fez algo que nunca antes tinha ousado fazer: tirou sua própria máscara!

Ao se olhar no reflexo do lago, ele viu um homem extremamente belo. Tinha cabelos claros como sol, pele branca como a neve e olhos brilhantes como a água. Estranhou olhar a si mesmo sem a máscara. Então chegou perto demais para poder olhar melhor e seu movimento provocou ondulações de distorceram a imagem. Assustou-se e jogou-se para trás.

Mas a ousadia dos jovens ainda estava nele e ele se aproximou mais uma vez quando a superfície do lago se acalmou. E então, pela primeira vez em toda sua vida, sentiu-se feliz de verdade. Saiu correndo por todo o vilarejo tentando dizer às pessoas que a maldição havia acabado e que ninguém mais precisava usar máscaras. Correu em direção à casa de Maisa porque queria compartilhar com ela a descoberta maravilhosa. Mas ao chegar lá uma grande tragédia havia acontecido! Sua melhor amiga estava deitada sobre uma poça de sangue. Não havia agüentado a pressão de ter deixado sua máscara cair na frente de outra pessoa. Não se deu sequer o direito de saber o quanto era bela.

E Jony, perdido em tantos pensamentos sem sentido, se viu acusado de demônio por todos do vilarejo. Algumas pessoas sentiram-se tentadas a também tirar suas máscaras, mas não tiveram coragem. Outras estavam chocadas demais em ver alguém sem sua máscara e não sabiam sequer o que deveriam pensar. Mas a grande maioria das pessoas achava que Jony era o culpado pela morte de Maisa. Pensavam que ela havia morrido porque ele havia novamente desafiado os deuses ao quebrar com a tradição. Ninguém, nem mesmo sua família e amigos, quiseram ouví-lo dizer que não havia mais nenhuma maldição e que todos poderiam ser quem eles realmente deveriam ser.

E foi assim que Jony tornou-se a primeira pessoa a sair de Lilitown desde que o vilarejo havia sido fundado. Foi expulso do único lugar que poderia chamar de lar e passou a ser um andarilho. Conheceu o mundo todo e descobriu que máscaras eram mais comuns do que poderia imaginar. Mas também descobriu outras pessoas que, como ele, preferiam mostrar ao mundo quem elas realmente eram. E assim viveu intensamente, com o rosto erguido e se orgulhando de cada ruga que o destino lhe deu.

E hoje, amigos, estamos aqui reunidos para dizer adeus a um homem que foi tudo o que sempre quis ser, um homem que acreditou na beleza da verdade acima de tudo. Porque, dizia ele, talvez ver a dor daqueles que amamos seja uma dura missão, mas ver o sorriso verdadeiro em seus rostos é também a suprema felicidade. Descanse em paz.

Jony Doe
*1/1/1901 +8/7/1975
“Aqui jaz um homem que viveu intensamente, sem medo e sem máscaras, apenas com a sua coragem e a sua verdade.”

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