terça-feira, 30 de setembro de 2014

2 colheres de felicidade - epílogo

O final feliz da história de Ana e Bia poderia terminar assim. Mas, como dizia o bilhetinho do biscoito de Ana, “coisas boas acontecem quando menos se espera”...

Um dia, pouco tempo depois da festa no orfanato, o senhor Isac, pai de Miguel, apareceu na doceria. Ele tinha propostas de negócios para fazer. Ana ouviu, mas agradeceu e recusou a oferta para vender os biscoitos da felicidade na rede de supermercados de Isac.

- Sinto muito, senhor Isac, mas eu não poderia fazer isso. Primeiramente porque a ideia não foi minha, muita gente se empenhou para tornar tudo isso realidade. E segundo, porque a ideia por trás dos biscoitos é a de deixar a vida das pessoas um pouquinho mais feliz e eu não vejo como isso seria possível se eles se tornassem um produto industrializado. Acho que o carinho com que a gente faz os biscoitos faz toda a diferença.
- Entendo, senhora Ana. No entanto, eu vi o sucesso que eles fizeram e finalmente descobri que foram a senhora e sua filha quem fizeram a festa de aniversário surpresa para o meu filho. Não se preocupe, não contei nada a ele. Mas ainda assim eu acho que tenho uma certa obrigação em ajudá-la. Pensei que vender os biscoitos na minha rede seria uma boa ideia, mas pelo visto me enganei novamente. Então, o que posso fazer por vocês?
- O senhor não precisa fazer absolutamente nada, senhor Isac! Nós ficamos muito felizes por termos conseguido ajudar o Miguel a se entender com o senhor outra vez.
- Sim, eu passo tanto tempo cuidando dos negócios que às vezes acabo negligenciando meu papel de pai. Neste ponto, devo dizer que a admiro muito, senhora Ana! A senhora parece estar fazendo um ótimo trabalho, tanto como empresária quanto como mãe!
- Empresária? Puxa, eu realmente nunca me vi assim. Era o Roberto quem cuidava da parte administrativa da doceria, eu mal sei o que estou fazendo!
- A senhora está com dificuldades com a burocracia, senhora Ana? Alguma coisa em que eu poderia ajudar? Talvez um empréstimo?
- Não, bom, não exatamente. É uma longa história...

Ana então contou a Isac sobre o inventário de Roberto e sobre as contas bloqueadas e sua preocupação com o 13º dos funcionários.

- Mas acho, acredito, que vai dar tudo certo. Já dei entrada para receber o seguro e a pensão, se tudo sair conforme o planejado, devo receber a tempo de pagar os funcionários.
- Senhora Ana, desculpe a indiscrição, mas acho que você não deveria misturar suas finanças pessoais com as finanças da empresa. Será que a venda dos novos biscoitos não seria o suficiente para pagar o 13º?
- Não tenho certeza, faz só algumas semanas que eles foram lançados e...
- Posso dar uma olhada no seu livro-caixa?

E assim Isac se tornou o mentor administrativo da doceria. Ele não cobrou nada pela ajuda, mas, com seus conselhos, Ana logo aprendeu a lidar com toda a papelada, sem a velha insegurança. O seguro e a pensão realmente saíram quando se esperava, mas Ana não precisou deles para pagar os funcionários. A doceria tinha chegado ao ápice bem mais cedo do que Ana e Roberto jamais poderiam ter sonhado. Logo o site começou a receber encomendas para bolos de aniversário e de casamento. Ana teve que contratar mais funcionários, mas agora isso não a apavorava tanto quanto antes. Gabi se formou com louvor e também foi chamada para fazer a reformulação visual da loja e de todas as embalagens. Ela e Pedro começaram a namorar e cuidam juntos do site e das redes sociais da doceria. Ana também promoveu Pedro ao cargo de gerente. Dona Rute finalmente fez as pazes com o filho. Este se separou da ex e agora namora a dona de uma livraria, onde Bia sempre compra livros novos. Os bilhetinhos dos biscoitos da felicidade nunca erram.

“Não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho.”
Mahatma Gandhi

2 colheres de felicidade - XI

A festa no orfanato foi inesquecível. Bia, Rafael e Bianca se enturmaram bem rápido com as outras crianças e brincaram como nunca. Dona Rute, senhor Antônio e Ana ficaram na cozinha, assando e fritando os salgadinhos e distribuindo pedaços de bolo e biscoitos. Gabi e Pedro passaram o dia lendo para as crianças, que saíam imitando os heróis dos livros assim que a história terminava, estreando seus brinquedos novos. Foi um dia agradável para todos. Os membros da gangue receberam tanto carinho das crianças que foi como se todo o trabalho que tinham planejado por semanas fosse um quase nada perto do que receberam em troca.

- Eu não sei quanto a vocês, mas eu com certeza quero adotar uma criança daqui a alguns anos!
- Olha, Gabi, eu confesso que nunca pensei em ter filhos, mas depois de hoje, estou até reconsiderando!
- Pedro, eu sei como você se sente. Depois de tudo o que aconteceu hoje, estou até com vontade de ligar para o traste do meu filho e fazer as pazes!
- Faça isso, dona Rute, faça isso! Hahaha!
- Mamãe, estou tendo outra ideia...
- Ah, não, outro segredo desses eu não aguento, Bia!
- Não, mamãe, eu só estava pensando se a gente poderia fazer tudo de novo no natal! Só que dessa vez, a gente pode pedir para as pessoas doarem roupas novas, que tal? Aí as crianças vão poder passar o ano novo bem bonitas! Acho que elas iam gostar!
- É, eu acho que é uma boa ideia, Bia! Pelo menos agora a gente já vai ter mais experiência nisso, acho que vai ser tudo mais fácil de planejar!
- É verdade, Pedro! E temos bastante tempo para isso ainda! Eu adoraria voltar aqui mais vezes!
- Nós também, menina Gabriela! O Rafael e a Bianca adoraram os amigos novos.
- Então, acho que estamos combinados! Nova festa para as crianças do orfanato no natal!
- Obaaaaaaaaa! Obrigada, mamãe! E você também poderia pensar em adotar um irmãozinho para mim, né? Eu ia gostar muito...
- Hahaha! Eu posso pensar no caso, Bia, mas não prometo nada, ok? Ainda tenho muitos problemas para resolver antes de tomar uma decisão tão importante assim.
- Que problemas, Ana? Sejam lá quais forem, estamos todos aqui para ajudar!
- Ééééé! A gangue dos super biscoitos vai mudar o mundo, mamãe!
- Hahaha! Gostei do nome! Mas não quero nem pensar nos problemas agora, hoje é dia de comemorar! Só tenho a agradecer por ter vocês ao meu lado, vocês são os melhores amigos do mundo!

“Querida vovó!

Eu estou feliz que o vovô já tenha ficado bom logo, mamãe disse que podemos passar o ano novo com vocês, mas no natal a gente vai ficar aqui para fazer outra festa no orfanato! Mal posso esperar!

Eu gostei muito do livro que vocês me mandaram junto com a outra carta! Já estou quase terminando de ler. Eu e o Beto lemos juntos todas as noites. Estou treinando com meu ursinho porque, quando eu tiver um irmãozinho, eu vou ler para ele dormir, que nem a mamãe fazia comigo.

Que bom que vocês gostaram dos biscoitos, o segredo deles é que eles têm muita felicidade na receita! E as frases? O que você e o vovô acharam delas? E o tio Carlos, vocês entregaram o pacotinho que eu mandei para ele? Os biscoitinhos da felicidade estão fazendo muito sucesso na doceria! Agora vem gente de todos os lugares para comer doces lá, a mamãe está muito feliz!

Agora eu preciso ir, a gente vai na doceria para decidir sobre a festa de natal. Manda um beijo para o vovô! Te amo, vovó!

Beijos!

Bia.”

2 colheres de felicidade - X

O resto da semana seguiu quase normalmente. Ana levou os documentos para o doutor Fabrício e este lhe garantiu que agora estava tudo ok, o inventário de Roberto ficaria pronto o mais rápido possível. A quantidade de bilhetinhos enviados e recebidos pelos membros da gangue da Bia também aumentou. E na sexta à noite, Ana finalmente teve a notícia que tanto aguardava:

- Ana, eu sei que sábado é o seu dia de folga, mas a gente estava querendo saber se teria como você e a Bia virem aqui amanhã, no fim do expediente.
- Isso tem alguma coisa a ver com o segredinho da gangue, Pedro?
- Sim, chegou a hora de contar a você do que se trata essa mega operação afinal!
- Ah, eu virei com certeza! Não aguento mais de tanta curiosidade!
- Você vai gostar, tenho certeza!

Ana tentou convencer Bia a lhe dar alguma dica do que aconteceria no dia seguinte, mas é claro que não conseguiu nenhuma informação, exceto de que agora dona Rute também fazia parte da gangue.

- Até ela? Mas quando foi que ela entrou para a gangue se eu não me lembro de ter dado nenhum dos seus bilhetinhos para a nossa vizinha?
- Porque não precisava, né, mamãe? Eu sempre encontro com a dona Rute no elevador, na portaria, em vários lugares. E eu já tinha falado com ela aquele dia que eu desci para jogar totó com o tio Carlos, ué!
- Então seu tio Carlos também sabe do segredo?
- Ele sabe mais ou menos, mas eu pedi para ele não contar nada para a vovó ainda. Eu quero eu mesma contar para ela quando tudo estiver pronto.
- Pensei que já estava, o Pedro disse que a gente precisa ir lá amanhã para vocês me contarem tudo!
- Não, mamãe, os planos estão prontos, mas ainda falta colocar em prática e você vai precisar ajudar a gente também. Porque a gente vai precisar pegar algumas coisas da doceria emprestadas...
- Emprestadas? Uhm...
- Ah, mamãe! Você já esperou tanto tempo, que custa esperar só mais um dia?
- Tudo bem, Bia, vou esperar. E já que você falou da vovó, acho que vou ligar para ela para saber se o vovô já está melhor.
- Eu posso falar com o vovô também?
- Se ele estiver bem, pode sim. Espera só um pouquinho. Alô? Cláudia? É a Ana! Tudo bem?
- Ana! Tudo bem sim! Algum problema com os documentos? Ainda falta alguma coisa?
- Não, já falei com o advogado, ele disse que está tudo certo agora, obrigada! Eu liguei para saber notícias do senhor Paulo. O médico já disse alguma coisa?
- Ah, ele vai precisar fazer uma operação, mas o médico disse que o tumor ainda é bem pequeno, então a chance de dar tudo certo é grande. Agora estamos correndo para fazer mais exames para marcar logo a data. Se tudo sair como planejado, até o natal o Paulo já deve ter tido alta do hospital e você e a Bia vão poder vir passar as festas aqui com a gente!
- Ah, eu e a Bia vamos ficar aqui torcendo por isso então! Mantenha-me informada e se precisarem de alguma coisa, me avise! Escute, a Bia queria falar oi para o avô, será que o senhor Paulo poderia falar com ela um minutinho?
- Sim, ele está aqui do meu lado! Mas eu posso falar com ela primeiro?
- Bia, é a vovó, ela quer falar com você antes de passar para o vovô.
- Oi, vovó! A dona Rute já consertou o nariz do ursinho e ela até fez uma roupinha nova para ele, ele está lindo!
- E você já deu um nome para ele?
- Acho que vou chamar o ursinho de Beto, igual ao apelido do papai!
- Seu pai iria ficar muito feliz, Bia! Mas eu queria falar com você para saber se você já mandou a cartinha para mim!
- Ainda não, vovó, mas vai demorar só mais alguns dias! Eu prometo que te conto tudo logo, logo!
- Está bem, vou esperar então! O vovô vai falar com você agora!
- Oi, minha netinha linda! Você queria falar com o vovô?
- Vovô, aquele dia você foi embora da minha casa muito rápido porque você estava doente, eu queria saber se você já sarou!
- Ainda não, Bia, mas eu acho que antes do natal eu já vou estar bom, aí você vai poder vir aqui me visitar!
- Ah, está bom, então! Vou ficar aqui torcendo para você sarar logo, vovô! E pede para a vovó te dar beijinhos para você sarar mais rápido!
- Hahaha! Está bem, vou falar para ela! Tchau, Bia! Manda um beijo para a mamãe também! E se comporte, heim?
- Eu sou muito comportada, vovô! Beijo!
- A senhora é muito comportada, é? Sei...
- Mamãe! Que feio, escutando a conversa dos outros!
- Hahaha! Foi sem querer, Bia, desculpa! O jantar está pronto, vamos comer?
- Vamos! Estou com muuuuita fome hoje!

E eis que o grande dia chegou finalmente. No sábado à tarde, assim que terminaram de fechar a doceria, todos se reuniram ao redor de uma mesa com várias caixas. Gabriela e dona Rute também estavam lá, Pedro estava com seu laptop e até Maria e Joana, as atendentes da doceria, ficaram para a reunião. O senhor Antônio chegou da cozinha com uma forma enorme de biscoitos.

- Bom, Ana, chegou a sua hora de entrar para a gangue! Bia, você quer contar para a sua mãe como isso tudo começou?
- Mamãe, você se lembra daquele bilhete que você me mostrou uma vez? Que a Gabi tinha escrito para você? Da receita da felicidade?
- Me lembro sim, claro, Bia!
- Eu gostei do que ela escreveu, aí quando eu vim com você aquele dia na doceria e vi o senhor Antônio fazendo biscoitos, eu tive uma ideia! A gente podia fazer biscoitinhos da felicidade! Tipo aqueles biscoitos da sorte chineses, só que mais legais!
- Quando eu conversei com a Bia aquele dia e ela descobriu que tinha sido eu que tinha escrito o bilhete, ela resolveu compartilhar o segredo comigo e perguntou se eu a ajudaria a escrever mais frases! Eu achei a ideia genial e, além das frases, também ajudei a criar as embalagens, são caixinhas que viram mini-presentes, podem ser brinquedos, jogos, porta-retratos, um monte de coisas, já fiz um planejamento de 12 caixinhas, uma para cada mês do ano!
- Nossa, Gabi, mas isso deve ter dado um trabalhão! Como você arranjou tempo para fazer tudo isso em plena época de TCC?
- Ah, foi uma ótima distração, na verdade! Você se lembra que eu disse que estava descontando minhas agonias nos doces? Então, agora eu tenho uma coisa mais saudável e útil para fazer: criar embalagens para o projeto da Bia!
- As caixas estão lindas, dona Ana! E a minha parte, claro, foi criar as receitas dos biscoitos. Mas o formato e os sabores foram a Bia quem escolheu!
- Os biscoitos ficaram muuuuito deliciosos, senhor Antônio! Eu queria que os biscoitos ficassem bonitos, mas que também tivessem um lugar para gente colocar as frases para deixar as pessoas felizes. Aí eu pensei naquele biscoito do desenho do ogro que a gente assistiu outro dia na TV, mamãe. Eu falei: a gente pode fazer um biscoito com uma carinha feliz e colocar um furinho na mão dele para gente por o bilhete! Como se ele estivesse entregando o papel para a pessoa, sabe?
- Moldar o biscoito acabou sendo um pouco mais difícil que criar a receita, mas a gente finalmente conseguiu!
- Uau! Eles estão realmente lindos, tanto os biscoitos quanto as caixas! E eu adorei a ideia de colocar frases felizes neles! Mas eu ainda não sei qual é a minha parte no projeto!
- É aí que está, Ana. O plano é muito maior do que isso ainda!
- Como assim, Pedro?
- Bom, a ideia inicial era só vender os biscoitos aqui na doceria, como um diferencial, sabe? Para ajudar a divulgação e tal. A Bia achou que se a gente conseguisse mais clientes felizes, a doceria ia poder vender mais e você não ia mais precisar se preocupar tanto com o futuro de vocês, ela queria fazer isso para ajudar você, Ana!
- Verdade, Bia? Puxa, eu não sabia que você estava assim tão preocupada comigo!
- Ah, mamãe, desde que o papai morreu que você parece que está sempre triste e preocupada, eu queria fazer alguma coisa para te animar!
- Nossa, isso sim foi uma grande surpresa!
- Então, Ana, quando eu descobri o que eles estavam tramando, eu também tive uma ideia: criar um site para a doceria! Eu gosto de mexer com essas coisas, meio que por hobby mesmo. Aí quando conversei sobre isso com a “gangue”, a gente se tocou que precisava de um plano de marketing também! Porque não adianta ter um produto super legal se ninguém sabe que ele existe, né? Foi aí que a gente decidiu aproveitar o dia das crianças semana que vem para ajudar a divulgar os biscoitinhos da felicidade!
- A gente adorou essa ideia do Pedro de fazer um site para a doceria, mas ainda faltava alguma coisa a mais. E foi aí que a Bia apareceu com uma ideia ainda mais legal!
- Que ideia, Gabi?
- Aproveitar o lançamento dos novos biscoitos para ajudar as crianças do orfanato! O que pode combinar mais com biscoitos da felicidade do que fazer crianças sorrirem? E é aí que você entra, Ana! A gente vai precisar da sua autorização!
- Minha autorização para que?
- Para deixar a gente usar a cozinha da doceria para a gente fazer os biscoitos, dona Ana!
- Ana, o plano é o seguinte: para divulgar os novos biscoitos, no dia do lançamento, todo mundo que trouxer um brinquedo novo ou um livro infantil, ganha um pacotinho de biscoitos da felicidade de graça. Depois a gente pega tudo o que foi doado e leva para as crianças do orfanato do lado da minha faculdade!
- Mas isso é IN-CRÍ-VEL, Gabi!
- Eu também achei a ideia genial, Ana! Então para colaborar, eu vou ajudar a pagar os ingredientes da primeira leva! E ainda convenci meu filho imprestável a usar a empresa dele para patrocinar mais alguns pacotes também. Pelo menos para isso ele tem que servir, né?
- Dona Rute, se o seu filho vai mesmo ajudar nesse projeto, pode ter certeza de que ele ainda tem jeito, não desista dele tão fácil!
- Então estamos pensando em fazer o lançamento dos biscoitos no sábado, dia 11, assim a gente consegue levar os brinquedos no orfanato no dia seguinte, dia das crianças. Se você concordar com o plano, a gente vai criar uma página nas redes sociais hoje mesmo para todo mundo ficar sabendo, aí quem sabe pessoas de outros bairros da cidade venham conhecer a doceria e fazer a doação também. É perfeito! A gente divulga a doceria para o mundo todo e ainda ajuda as crianças do orfanato a ter um dia mais feliz! O que você acha, Ana?
- Onde é que eu assino, Pedro? Hahaha! Mas, sério, qual é a minha parte nisso tudo? Eu também quero fazer parte desse projeto!
- Bom, dona Ana, o que eu, a Maria e a Joana combinamos é que todo mundo ficaria aqui na sexta, dia 10, fazendo hora extra para deixar os biscoitinhos prontos para o dia seguinte. A senhora não vai precisar pagar nada a mais não, a nossa mão de obra é a nossa parte da doação para as crianças do orfanato. Só que a gente vai precisar que a senhora nos autorize a usar a cozinha da doceria até mais tarde.
- Com certeza eu autorizo, senhor Antônio! Aliás, eu também quero ajudar a colocar a mão na massa, literalmente!
- E eu também queria uma autorização sua, Ana! Eu queria levar a Bia para ajudar a distribuir os livros e os brinquedos comigo, afinal a ideia toda foi dela!
- Não precisa de autorização, Gabi, faço questão de ir com ela também!
- Eu também já falei com os meus meninos e a gente vai com vocês levar alguns livros, roupas e brinquedos que eles não usam mais lá no orfanato domingo. E se a dona Ana autorizar, eu queria levar uns biscoitos da felicidade para eles também!
- E eu vou fazer salgadinhos para todo mundo! Porque festinha que se preze precisa ter comida, né? Será que a gente também não podia levar um desses bolos deliciosos da doceria para eles? - Com certeza, dona Rute! Vocês já pensaram em tudo! Eu nem sei o que dizer!
- Eu já falei com a tia Kelly também, ela falou que vai pedir para a tia Paula deixar a gente colocar um cartaz na escola para os pais dos alunos virem aqui sábado fazer a doação, mamãe! A Gabi já até fez o cartaz, você quer ver?
- Nossa, eu estou sem palavras! Vocês tinham razão, valeu a pena esperar para saber qual era o grande segredo afinal! Podem contar comigo nessa gangue, eu vou fazer tudo o que eu puder para ajudar!
- Você está chorando, mamãe? A gente fez alguma coisa errada?
- Não, Bia, nem sempre quando a gente chora é porque está triste. Às vezes, a gente fica tão feliz que transborda, aí a gente chora de felicidade!
- Bom, se não temos mais nada a discutir, vamos comemorar experimentando os biscoitinhos da felicidade! Olha o meu aqui: “Felicidade é um bem que se multiplica ao ser dividido”. Não poderia ser mais verdade! “Dica do dia: ofereça um pouquinho do que você sabe fazer de melhor com alguém que precise.” É o que estou tentando fazer agora! E você, Ana, o que está escrito no seu bilhete?
- “A felicidade não consiste em ter o melhor de tudo, mas em saber tornar tudo melhor.” Acho que essa é mesmo a grande lição que eu tenho aprendido nas últimas semanas, Pedro! “Dica do dia: seja otimista, mesmo quando o dia for ruim. Coisas boas acontecem quando menos se espera!” Nossa, isso parece até que foi escrito especialmente para mim!
- Eu também quero um biscoitinho! “Felicidade é o encontro do sonho com a realidade. Dica do dia: não desista, seu esforço vai valer a pena no final!” Acho que vou colocar isso na minha mesa de estudos para eu ler toda vez em que eu for escrever meu TCC! Hahaha!
- Boa, Gabi! E o seu, senhor Antônio, o que é que diz?
- Diz assim, Pedro, “felicidade é...”

E assim terminou o dia, cada um com seu biscoitinho da felicidade, felizes por fazerem parte daquele grupo de pessoas com grandes ideias. O lançamento dos biscoitos foi um sucesso tremendo, a fila para a doação de livros e brinquedos saía pela porta e ia até a rua. Até o Miguel e a mãe apareceram na doceria naquele dia para levar brinquedos! A gangue toda apareceu para ajudar, pois o senhor Antônio sozinho não dava conta de fazer tantas fornadas de biscoitos para os clientes que não paravam de chegar. Ana e dona Rute foram para a cozinha ajudá-lo, Gabi ficou com Maria e Joana atendendo os clientes e Bia se encarregou de separar e guardar as doações. Alguns clientes gostaram tanto dos biscoitos e das frases que acabaram voltando mais tarde, trazendo outras pessoas para experimentarem e fazerem mais doações! No final do dia, estavam todos exaustos, mas felizes!

- Gente, eu não sei quanto a vocês, mas eu vou para casa tomar um banho! Eu nem sei onde vou arranjar forças para fazer os salgadinhos, mas eu vou me virar!
- Acho melhor a gente ir também, Bia, a gente ainda tem que separar as doações e embrulhar tudo. Só não sei como a gente vai levar tudo isso a pé!
- Eu vim de carro, Ana, não se preocupe, eu levo vocês! E amanhã eu também busco vocês e a dona Rute para a gente ir juntos ao orfanato.
- Como fazemos então? Nos encontramos às 10:00 lá na porta? Eu fiquei de ligar para a diretora do orfanato para avisar a hora que iríamos lá.
- 10:00 parece bom, Gabi. Está bom para você também, senhor Antônio?
- Está sim, Pedro. Só que os biscoitos acabaram! Eles fizeram mais sucesso do que a gente esperava. Será que eu posso ficar aqui mais um pouco para fazer os biscoitos para a gente levar lá amanhã, dona Ana? Eu fecho a doceria direitinho depois.
- A gente fica para te ajudar, Antônio. Eu e a Joana podemos ficar mais um pouco também. A gente te ajudar a empacotar os biscoitos e a limpar tudo depois.
- Obrigado, Maria! Se não for problema para vocês, eu aceito a ajuda!
- Vocês moram muito longe, Ana? Eu posso ir com vocês ajudar a embrulhar os presentes! Ou então eu posso ajudar a dona Rute a fazer os salgadinhos. Eu não sou nenhuma expert na cozinha, mas posso tentar!
- Bom, podemos fazer assim: eu, você e a Bia cuidamos dos presentes e a dona Rute e a Ana cuidam dos salgadinhos, acho menos arriscado assim, que tal? Se ficar muito tarde, eu trago você de volta para a sua casa depois, Gabi.
- Vocês vão virar namorados?
- O que? Como assim, Bia? Não é nada disso, eu...
- Meninos, não se preocupem, o que tiver que acontecer, vai acontecer. Mas, por mim, a sugestão do Pedro é ótima, só preciso saber se a Ana concorda!
- Por mim, tudo bem, dona Rute! Só preciso tomar um banho antes do segundo round também. Senhor Antônio, vou deixar a cópia da chave com o senhor, então, qualquer coisa vocês têm meu telefone, né?
- Não se preocupe, dona Ana! A gente vai terminar tudo aqui e amanhã eu levo a chave para a senhora!
- Vamos, então? Deixa que eu levo a caixa de livros, está mais pesada!
- Eu ajudo a Ana a carregar a caixa de brinquedos! Será que cabe tudo no porta-malas, Pedro?
- A gente dá um jeito, Gabi.
- Mamãe, eu acho melhor a gente pedir pizza para todo mundo, não vai dar tempo de fazer o jantar!
- Ótima ideia, Bia! Você liga para a pizzaria quando a gente chegar em casa?
- Eu ligo, mamãe, pode deixar!

2 colheres de felicidade - IX

Na manhã de segunda-feira, Ana ligou para o doutor Fabrício para lhe informar que já estava com os documentos que ele havia lhe solicitado. Ele lhe pediu que levasse tudo na quarta-feira, já que ele não estaria no escritório antes disso, precisava resolver algumas coisas no fórum naqueles dois dias.

- Está bem, então, fica marcado para quarta-feira à tarde. Até mais, doutor Fabrício.
- Nos vemos quarta, Ana! Prometo que vou tentar não me atrasar desta vez.
- Obrigada. Até breve!

“Bom, agora é hora de distribuir os bilhetes da Bia. Vejamos o que eu sei até agora: temos uma criança de 6 anos com uma mentalidade muito fértil, três adultos, sendo um cozinheiro, uma designer e um faz-tudo. Também tem caixas e biscoitos envolvidos nesse plano de alguma forma. Mas se a ideia deles é só criar embalagens novas para os biscoitos, por que eles fariam tanto segredo?” – Ana se perguntou. “Bom, pelo visto não adianta especular, vou mesmo ter que esperar para saber. Mas pelo menos o Pedro disse que isso deve acontecer ainda essa semana. Ainda bem, não aguento mais de tanta curiosidade!”

No fim do dia, ao buscar Beatriz na escola, Ana teve outra surpresa.

- Mamãe! Você não imagina o que aconteceu! O Miguel doou um montão de brinquedos para a escola! A tia Paula disse que vai arrumar uma sala para virar brinquedoteca, aí todo mundo vai poder brincar com os brinquedos que a escola ganhou! Ninguém mais vai precisar ficar triste porque não tem brinquedo!
- É verdade isso, Bia? Nossa, mas que mudança de atitude do Miguel, heim?
- É verdade sim, Ana! Aliás, você tem dois minutinhos? Eu queria ter uma palavrinha com você.
- Claro, professora Kelly! Bia, você pode me esperar no pátio? Mas não vá fazer muita bagunça, tá?
- Eu vou ficar brincando com a Gabi, tá? A mãe dela sempre se atrasa para vir buscá-la.
- Está bem, qualquer coisa eu estou aqui na sala com a tia Kelly.
- Bom, Ana, eu queria te agradecer pela ideia da festa, pelo bolo e tudo mais. Você e a Bia operaram um verdadeiro milagre nesta escola! O Miguel é outra pessoa agora! Até o pai dele veio aqui conversar com a gente! Justo ele, que nunca vem nem nas reuniões!
- A Bia estava um pouco preocupada porque ela achou que o Miguel pensou que a festa foi feita pelos pais, aí ela estava com medo de como ele ia se sentir quando descobrisse a verdade.
- É justamente por isso que o pai dele veio aqui. O Miguel chegou em casa tão eufórico aquele dia que os pais até ficaram com vergonha por não terem feito nada de especial para o filho no aniversário dele. Olha, pela primeira vez em três anos, a gente finalmente conseguiu conversar a sério com o pai dele e explicar toda a situação. Eu não acho que as coisas vão mudar assim de uma hora para a outra, mas eu me senti absolutamente aliviada depois daquela conversa. E parece que ela teve algum efeito mesmo, como você pode ver pela quantidade de brinquedos que o Miguel e o pai doaram para a escola! Eu e a diretora Paula chegamos à conclusão de que seria melhor deixar que o Miguel continue pensando que a festa foi um presente dos pais. Eu já tinha conversado com a turma antes, então eu sei que ninguém vai contar nada. O pai se emocionou com tudo o que aconteceu e perguntou o que poderia fazer pela escola, como retribuição. A gente só pediu para que ele passe mais tempo com o filho, que dê mais atenção a ele. E quando eu cheguei na escola hoje de manhã, me deparei com caixas e mais caixas de brinquedos no corredor! O Miguel e os pais resolveram doar os brinquedos que o Miguel não usa mais para a escola. O pai disse que ele tem um armário enorme de brinquedos, mas como é filho único, em casa ele passa mais tempo jogando vídeo game do que brincando com os bonecos e com os carrinhos, então eles seriam mais úteis aqui do que na casa deles. Três anos sem responder os bilhetes na agenda e sem comparecer às reuniões e de repente o pai aparece aqui duas vezes seguidas em menos de uma semana!
- Mas isso é IN-CRÍ-VEL, como diz a Bia! Eu nunca imaginei que um simples bolo de dinossauro fosse fazer tanta diferença na vida de alguém!
- Acho que não foi só o bolo. Tem também o cartão que a Bia fez e tem toda essa novidade dos pais finalmente darem um pouco de atenção para o menino, né? Às vezes, um pedaço de bolo e 5 minutinhos de conversa fazem muita diferença na nossa vida. Então, em meu nome e de toda a escola, a gente queria te agradecer por fazer tudo isso acontecer e sem sequer levar os louros dessa vitória! A Bia realmente tem muita sorte por ter uma mãe como você!
- Acho que sou eu quem tem sorte por ter uma filha como ela.
- Acho que vocês duas merecem uma à outra! Obrigada mais uma vez, Ana!
- Não há de que, professora! Bia! Vamos para casa!
- Mamãe, eu achei muito legal o Miguel ter doado os brinquedos para escola! Antes os meninos eram amigos dele por causa dos brinquedos que ele trazia, mas agora os brinquedos são de todo mundo!
- Ah, é, dona Bia? E você vai querer doar os seus brinquedos também?
- Eu não tenho tantos brinquedos assim, né, mamãe! Mas isso me deu outra grande ideia!
- Não me diga que é mais um dos seus segredinhos!
- Não é mais um, é o mesmo, só que melhor!
- E você não vai me contar...
- Ainda não! Preciso falar com a minha gangue primeiro!
- Gangue?
- Ué, não é assim que você anda chamando a gente, mamãe?
- Hahaha! É verdade, Bia. Estou louca para descobrir qual é esse segredo afinal!
- Tem muitas crianças no mundo que não têm brinquedos?
- Acho que sim. Muitas crianças não têm nem o que comer, Bia! Tem gente no mundo que vive no meio da guerra, ou que não tem casa, ou que não tem pai nem mãe. Às vezes a gente reclama dos nossos problemas e nem se dá conta de que tem muita gente passando por coisas piores.
- Mas... como uma criança vive sem pai nem mãe? Criança nem pode trabalhar!
- Eles vivem em orfanatos. É como se você morasse em uma escola, entende? Então você estuda e vive no mesmo lugar, com outras crianças que não têm pais.
- É como ter um monte de irmãos, só que de pais diferentes? E quem cuida deles?
- Sempre tem alguns adultos para cuidar das crianças, geralmente freiras ou algo do tipo.
- E quem dá presente para eles no aniversário, no dia das crianças e no natal? Não vale falar que é Papai Noel!
- Eu não sei exatamente, mas eu acho que nem sempre eles ganham presentes, Bia. As freiras não têm dinheiro para comprar brinquedos para tantas crianças.
- Ah, puxa, seria legal se alguém pudesse doar um montão de brinquedos para eles, que nem o pai do Miguel doou para escola, né, mamãe? Deve ser muito triste não ganhar nada no seu aniversário. Mamãe, você promete que não vai morrer até eu ficar grande? Eu não quero morar em um orfanato!
- Bia, esse é o tipo de coisa que ninguém pode prometer, né? O papai não queria morrer e deixar a gente, foi um acidente. Ninguém sabe como vai ser o futuro. Mas você não precisa se preocupar, se acontecer alguma coisa com a mamãe, a vovó vai cuidar de você, você não vai precisar ir para um orfanato!
- Mas, mamãe, eu já morro de saudades do papai, eu não vou aguentar ficar sem você também!
- Bia, filha, não precisa chorar! Não adianta a gente se preocupar com coisas que a gente nem sabe se vão acontecer! Podem acontecer coisas ruins, mas também podem acontecer coisas boas! O importante é como a gente lida com elas. O Miguel, por exemplo, todo mundo achava que era ruim ficar perto dele, né? E olha agora! Ele está todo feliz e sendo legal com todo mundo e foi VOCÊ quem ajudou a fazer isso! A gente consegue transformar coisas ruins em coisas boas, filha. Dá trabalho, mas vale a pena, não acha?
- Mesmo assim, eu preferiria que você não morresse nunca, mamãe!
- Eu vou ficar com você pelo máximo de tempo que eu puder, eu prometo! Agora, faça uma cara feliz! A gente tem que ficar feliz com as coisas boas que a gente faz pelos outros! A tia Kelly pediu para falar comigo para agradecer por a gente ter ajudado com a festa do Miguel! Ela só não falou com você para ninguém desconfiar que foi a gente que inventou tudo isso, porque é segredo, né?
- Você tem razão, mamãe! A gente forma uma grande dupla! Vai ser muito legal quando a gente puder deixar você entrar para nossa gangue também!
- Ah, então quer dizer que eu vou poder participar também algum dia?
- Logo, logo, mamãe! Eu só preciso combinar com eles antes sobre a ideia que eu tive hoje, aí depois a gente te conta direitinho! Só espero que dê tempo para fazer a parte dessa nova ideia...
- Ok, chega de me deixar curiosa, vamos para casa!

2 colheres de felicidade - VIII

Depois do almoço de sábado, Bia serviu a sobremesa e ganhou vários elogios dos avós e do primo. Depois disso, ela e Carlos foram para o salão de jogos jogar totó e Ana e os sogros ficaram conversando no apartamento.

- E então, como foi o exame, Cláudia? Está tudo bem com o senhor Paulo?
- Ainda não sabemos, o resultado do exame sai em três dias, mas a gente pode pegar pela internet mesmo, não precisamos esperar aqui. Eu até tentei descobrir alguma coisa com o enfermeiro que fez o exame, mas ele disse que sem ter o histórico do Paulo e os outros exames, não seria ético dar um resultado impreciso. A gente vai ter que aguardar mesmo e depois conversar com o nosso médico lá.
- O que o doutor José me disse foi que provavelmente eu já tinha algum problema antes e que essa tensão toda por causa do acidente do Roberto pode ter potencializado os sintomas.
- Assim que a gente chegou em casa depois do enterro, o Paulo passou mal, foi aí que a gente descobriu que ele tinha esse tumor. De certa forma, foi bom, se não fosse por isso a gente poderia acabar descobrindo tarde demais.
- O susto foi tão grande que eu e a Cláudia resolvemos antecipar nosso check up anual. O dela, pelo menos, não deu nada muito fora do normal, só estresse mesmo. Mas se eu tiver que operar, eu opero. O que é uma operação para quem acaba de perder o filho, né?
- E você e a Bia, como estão, Ana? Vocês estão precisando de alguma coisa? Desculpa não ter dado muito atenção para vocês nessa hora tão difícil, mas esse diagnóstico do Paulo também pegou a gente de surpresa. Se não fosse o meu sobrinho Carlos, eu acho que já teria ficado louca! Ele está sendo como um filho, leva a gente para fazer todos os exames! Eu fico preocupada com você e a Bia aqui, sem nenhum parente por perto. Eu sei que a doceria é importante para você, mas, é como eu disse antes, se vocês quiserem, podem vir morar com a gente, vocês sempre vão ser bem-vindas lá em casa.
- Obrigada, Cláudia, mas não queremos dar trabalho para vocês. Por enquanto, estou conseguindo tocar a vida. Ainda estou um pouco perdida com essa coisa de administrar um negócio e fazer o inventário do Roberto, mas tem muita gente me ajudando aqui, eu e a Bia não estamos sozinhas, não se preocupe!
- Eu fico aliviada em saber que vocês estão bem, apesar de tudo. Bem, aqui estão os documentos que eu encontrei em casa, será que algum deles pode ajudar?
- O advogado me deu essa lista com os documentos que estão faltando, vamos conferir aqui... sim, eu acho que é exatamente isso que ele precisa! Ah, que bom que encontramos! Eu não sabia mais onde procurar!
- Eu tinha levado no cartório para reconhecer firma, mas acabei demorando e o meu filho tinha horário para pegar o avião para voltar, aí eu fiquei de entregar depois e no fim nós dois acabamos esquecendo, me desculpe por esse transtorno, Ana!
- Imagina, senhor Paulo! Ninguém nunca espera que pessoa que vive do nosso lado vá morrer de uma hora para a outra, né? O importante é que agora a documentação do Roberto está certinha e o inventário vai ficar pronto mais rápido.
- E está tudo assinado, com firma reconhecida e tudo. Mas, olha, eu sei que essas coisas demoram, se você estiver precisando de dinheiro para comprar as coisas para a minha neta, pode falar, viu? Nós não somos ricos, mas no que a gente puder ajudar a Bia, a gente vai ajudar!
- Por enquanto está tudo bem, senhor Paulo, estou conseguindo me virar. E acho que o melhor que o senhor pode fazer pela Bia agora é cuidar da sua saúde! Ela acabou de perder o pai, ela não pode perder o avô tão cedo, não!
- Ah, com isso você não precisa se preocupar, não, eu ainda quero viver até ver a minha neta se formar na faculdade!
- Mamãe! Já voltamos! O tio Carlos é muito ruim no totó, ele perdeu até de mim!
- Ah, mas você fica girando sem parar, eu te disse que isso não vale, né?
- Mas eu sou criança, criança joga assim, ué!
- Bia, você não pode inventar regras só para poder ganhar, né? Tem que jogar direitinho, senão não vale!
- Ah, tá bom, mamãe. A gente pode considerar empate então, tio Carlos?
- Ok, empate então. Mas eu vou querer revanche quando eu vier para cá outra vez!
- Bia, vem aqui com a vovó um pouquinho! Tenho umas coisas para te mostrar!
- O que é, vovó?
- Eu achei umas fotos de quando o seu pai era criança, da sua idade, você quer ficar com elas?
- Olha, o papai era bochechudo!
- Sim, seu pai foi uma criança gordinha! Mesmo assim ele era lindo, não acha? Ele tinha os olhos iguais aos seus!
- E quem é esse aqui com o meu pai?
- Sou eu, ué, não reconhece o seu avô?
- Mas você tinha muito cabelo antes, vovô! E agora já está ficando careca!
- Ah, é que dá muito trabalho ficar penteando o cabelo todo dia de manhã!
- Bia, eu também trouxe essas coisas aqui, elas eram do seu pai, eu queria que você guardasse de lembrança.
- Um ursinho de pelúcia sem nariz e um cobertor de criança?
- Sim, eram do seu pai quando ele era bebê, eu não tive coragem de jogar fora, mesmo que estejam velhos.
- Mamãe, será que a dona Rute consegue consertar o nariz do ursinho para mim? Eu gostei dele!
- A gente pode pedir para ela, Bia!
- Pessoal, desculpa ser chato, mas acho melhor a gente já ir se despedindo para ir ao aeroporto, já está quase na hora!
- Ah, obrigada, Carlos, se deixar a gente passa o dia todo aqui com a Bia e nem percebe!
- Mas por que vocês precisam ir embora tão cedo, vovó? Eu nem acabei de matar a saudade ainda!
- É que o vovô está um pouquinho doente, então o médico pediu para ele não ficar muito tempo fora de casa. Mas se o vovô sarar logo, quem sabe você não vai poder ir passar uns dias na casa da vovó nas suas férias, heim? Torce para o vovô ficar bom rapidinho, tá?
- Eu vou torcer com todas as minhas forças! Ah! Vovó! Você pode me dar o seu endereço?
- Para você ir me visitar nas férias, Bia? Pode deixar que a vovó te busca no aeroporto, não se preocupe!
- Não, vovó, é outra coisa, mas é surpresa! Quando estiver tudo pronto, eu mando para você pelo correio!
- Que tipo de surpresa, Bia?
- Não posso contar ainda, senão não vai ser mais surpresa, né?
- A Bia anda cheia de segredinhos ultimamente, Claudia. É praticamente um mistério ambulante!
- Mas vocês duas vão gostar da surpresa, eu tenho certeza!
- Está bem, aqui está o endereço, Bia, guarda direitinho, tá? Vovó está curiosa!
- E o vovô também!
- Se cuida, Ana, se vocês precisarem de mais alguma coisa, me liga, tá?
- Pode deixar, Cláudia! Por favor, me avisa quando tiver notícias sobre o exame, está bem?
- Aviso sim, a gente nem comentou nada antes porque não queria te dar mais preocupações. Mas vai dar tudo certo, para todos nós, chega de desgraça nessa família, né?
- Boa viagem, senhor Paulo! Cuida bem dessa saúde, heim?
- Pode deixar, Ana! Dá um beijo no vovô, minha netinha linda!
- Beijo, vovô! Beijo, vovó! Boa viagem!
- E eu, não ganho beijo, não?
- Beijo, tio Carlos! Eu vou treinar jogar totó sem girar, aí a gente vai ter nossa revanche na próxima vez!
- Vou aguardar ansiosamente! Tchau, Bia! Tchau, Ana! Obrigado pelo almoço, estava tudo muito bom!
- Obrigada por terem vindo! Boa viagem!

O resto do sábado e o domingo passaram tranquilamente naquela semana. Bia e Ana arrumaram a casa, fizeram a lição e assistiram juntas a um desenho na televisão. Bia aproveitou quando a mãe estava ocupada fazendo o jantar para espionar a caixa que a Gabriela havia lhe mandado. Achou tudo lindo, fechou a caixa novamente e escreveu bilhetes para cada um dos membros do seu grupo secreto. Estava quase tudo pronto para a grande surpresa.

2 colheres de felicidade - VII

No dia seguinte, Bia chegou eufórica da escola.

- Mamãe, a festa foi um sucesso! Alguns meninos até levaram presente de aniversário para o Miguel, nunca vi ele tão feliz! Todas as tias falaram que o seu bolo estava uma delícia, como sempre! O único problema é que ele pensa que foram os pais dele que fizeram a festa sem contar para ele. Claro que ninguém contou nada, né? Só espero que ele não fique muito decepcionado quando ele chegar na casa dele.
- Ah, é? Então quer dizer que hoje ele nem arranjou encrenca com ninguém? E o primeiro pedaço, para quem foi?
- Ele estava chato como sempre antes do recreio, mas depois da festa ele ficou tão contente que nem lembrou mais de ser chato! Eu queria saber o que ele pediu quando foi cortar o bolo, ele demorou um tempão para pensar! E ele já tem tudo, o que mais ele pode querer?
- Nem sempre as coisas são como parecem, Bia. Pode ser que tenha muita coisa que ele queira e que não pode ser comprada.
- Tipo a felicidade que a gente coloca na comida?
- É, tipo isso. E o cartão, ele leu? Gostou?
- A tia Kelly ajudou o Miguel a ler. Mamãe, eu acho que ele gostou mais do cartão do que dos outros presentes que ele ganhou! Acho que é porque tinha felicidade nele! Mesmo que ele seja muito chato com a gente às vezes, todo mundo se esforçou para deixar o cartão mais bonito porque todo mundo se empolgou com a ideia de comer bolo! Hahaha!
- Bom, pelo menos por um dia vocês viram que é possível fazer as coisas de um jeito diferente, né? Quem sabe de agora em diante vocês todos não consigam ser amigos de verdade.
- Não dá para fazer festa todo dia, mas vamos ver, né, mamãe! Amanhã eu te conto como ele vai se comportar.
- Eu desejo boa sorte para todo mundo então! Independentemente do que vai acontecer, eu tenho muito orgulho da minha filhinha linda que fez tudo isso acontecer!
- E eu tenho orgulho de ter a melhor mãe do mundo! Eu te amo, mamãe!
- Eu te amo também, Bia! Muito, muito, muito!

Na quinta-feira, ao fechar a loja, Pedro pediu a Ana para esperar um minuto, tinha esquecido que precisava entregar uma caixa a ela.
- Uma caixa? Caixa do que, Pedro?
- Bom, na verdade a caixa é para a Bia, será que você pode levar para ela? Foi a Gabi quem passou aqui mais cedo e pediu para entregar para ela.
- Ah, o tal segredinho da Bia. Não me diga que é você o tal quarto elemento da gangue!
- Hahaha! Ana, você fala como se a gente estivesse fazendo algo ilegal, mas eu tenho certeza de que você vai gostar quando souber o que é. E você conhece o ditado: duas cabeças pensam melhor do que uma... um monte então, imagina só no que vai dar! Eu mal fiquei sabendo do projeto e já estou com milhões de ideias para ele!
- Eu só não entendo porque todo mundo pode saber o que está acontecendo e eu não. Se é tão bom assim, por que só eu não posso ajudar?
- Porque, em parte, a surpresa é para você! Bom, não só para você, é para a doceria também.
- Para a doceria? Mas o que a Bia tem a ver com isso? Espero que isso deixe de ser segredo logo, porque eu estou cada vez mais confusa e curiosa com essa história!
- Não se preocupe, a gente só precisa terminar de acertar os detalhes. Na hora de colocar o plano em prática, você vai saber do que se trata, até porque a gente vai precisar da sua permissão.
- Pelo menos existe algum tipo de cronograma para essa maluquice toda?
- Segunda semana de outubro, é tudo o que eu posso dizer. Mas se tudo der certo, semana que vem você já vai saber do que se trata. É que começou com uma ideia pequena e aí cada pessoa que foi entrando na “gangue”, como você chama, foi incrementando mais a ideia até ela virar um projeto bem maior! E estamos todos muito empolgados, acho que isso tem tudo para dar certo!
- Essa semana mesmo eu estava dizendo para a minha vizinha que eu preciso exercitar mais esse meu lado de confiar mais nas pessoas ao meu redor, acho que eu estou sendo obrigada a fazer isso agora, quer eu queira, quer não!
- Então você promete que leva a caixa para a Bia sem espiar o que tem dentro dela?
- Ok, prometo. Mesmo me corroendo de curiosidade!
- Isso tudo vai valer a pena, eu garanto! Boa noite, Ana! Até amanhã!
- Até amanhã, Pedro!

A sexta-feira transcorreu normalmente, exceto pelo incrível trânsito de bilhetes, caixas e biscoitos entre Bia e sua “gangue”.

“Seja lá o que for que eles estejam tramando, parece que está mesmo virando uma grande bola de neve! O que será que uma garotinha de 6 anos e quatro adultos podem estar criando juntos?” – foi o pensamento que acompanhou Ana durante o dia inteiro. “E o pior é que além de não me contarem nada, eu ainda fico servindo de pombo-correio entre eles...”, suspirou. Se não confiasse tanto nas pessoas envolvidas, Ana já teria exigido que eles contassem o que estavam planejando. “Confiar, delegar, desapegar”, Ana dizia para si mesma, como um mantra. “Tenho que aprender a deixar de ser tão controladora.”

Quando chegou em casa depois do trabalho, ela tomou um banho e depois foi fazer o jantar enquanto conversava com a filha sobre o dia seguinte.

- O que você acha que podemos fazer para o almoço de amanhã? Você lembra que seus avós vão vir comer conosco, né?
- A vovó gosta muito daquele seu arroz colorido e o vovô adora lasanha!
- Está bem, mas arroz não combina muito com lasanha, vamos ter que fazer alguma outra coisa para a vovó comer com o arroz, não acha?
- Eu posso comer batatas? Já sei! Batatas com carne e aquele pozinho amarelo! Que fica meio ardidinho!
- Curry? Pensei que você não gostasse de curry!
- Eu gosto, mas só quando não está muito forte, porque senão eu tenho que beber um litro de água! E é melhor a gente não fazer muito forte mesmo, porque se o vovô quiser comer também, ele pode acabar engasgando e cuspindo a dentadura! Hahaha!
- Bia! Isso é coisa que se diga! Nem pense em falar essas coisas perto do vovô, heim? Senão ele vai achar que a mamãe não está te educando direito!
- Desculpa, mamãe! Mas eu já vi a dentadura do vovô! É engraçado quando ele fica sem dentes! Hahaha!
- Ai, ai, ai, como é que eu fui ter uma filha tão danadinha?
- Eu posso fazer a sobremesa? Deixa, deixa?
- E o que a senhora está pensando em fazer para sobremesa?
- Gelatina colorida! A gente faz a gelatina depois da janta e amanhã de manhã a gente junta tudo!
- Uhm, pode ser, deixa eu ver se a gente tem gelatina em casa... Sim, temos 3 pacotes, acho que é o suficiente, não vem tanta gente assim. Bia, no fim das contas ontem você acabou não me contando se o Miguel está se comportando melhor agora.
- Ah, está sim, mamãe! Hoje ele até ganhou um elogio da tia Kelly porque escreveu uma frase inteira certa! E você não vai acreditar! O pai dele foi na escola hoje!
- Jura? E você sabe qual foi o motivo da visita?
- A tia Kelly não quis falar, mas pelo menos o pai dele não estava com cara de bravo. Eu estava com medo que se o Miguel descobrisse que a festa não foi feita pelos pais dele, ele fosse ficar emburrado de novo. Ou que o pai dele fosse ficar bravo. Mas eu acho que está tudo bem, o Miguel estava até feliz por o pai dele ter finalmente ido na escola, porque ele nunca vai, nem quando tem festa. O pai dele só ficou uns minutinhos, ele falou com a tia Kelly e com a tia Paula. E todo mundo na sala queria ficar na porta espionando para ver a cara dele, mas a tia Tereza não deixou, então eu só vi rapidinho, depois tive que voltar para o meu lugar.
- Se você viu rapidinho, quer dizer que a senhora era uma das pessoas que estavam na porta quando a tia pediu para vocês ficarem sentados, é isso?
- Xi, falei demais! Mas foi só um minutinho, mamãe! Eu juro! Eu nem atrapalhei a aula, porque a tia Kelly nem estava na sala, ela estava falando com o pai do Miguel!
- Mas se a tia Tereza estava com vocês enquanto a tia Kelly estava fora, então você também tem que obedecer a tia Tereza, né? Não pode ficar fazendo bagunça fora de hora!
- Desculpa, mamãe! Foi mais forte que eu!
- Dessa vez passa, dona Bia! Eu fiz yakissoba, come direitinho e depois vamos fazer a gelatina, está bem?
- Obaaa! Adoro yakissoba! E depois da gelatina, a gente pode ler mais um pouquinho do livro da Matilda? Estou gostando muito dele!
- Claro, filha! Eu também estou gostando da história, foi uma ótima escolha!

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

2 colheres de felicidade - VI

O dia seguinte seguiu agitado, como sempre eram as coisas na doceria. Ana tentou convencer Antônio a lhe contar o que ele e a filha estavam tramando, mas ele apenas respondeu que ela não precisava se preocupar, seria uma boa surpresa quando estivesse pronta. Ana indagou se isso tinha alguma coisa a ver com o bolo do Miguel e Antônio disse que não.

- Por falar nisso, dona Ana, de que sabor a senhora vai querer o bolo? E para que horas?
- Acho que a Bia comentou alguma coisa sobre todo mundo gostar de chocolate. Será que a gente consegue terminar o bolo até umas 9:30? Aí eu posso pedir para o senhor Wilson, o tio da perua, vir pegá-lo aqui e levá-lo para a escola. O intervalo das crianças é às 10:00.
- É, vai ser um pouco corrido, mas vou deixar o que eu puder já adiantado hoje, aí amanhã a gente termina a decoração. São quantas crianças na turma da Bia?
- Acho que cerca de 20, mais ou menos. Vamos precisar mandar também umas 3 garrafas de refrigerante, copinhos e guardanapos.
- Então fazemos tudo no mesmo esquema que fizemos no aniversário da Bia? Só que com um dinossauro ao invés de uma princesa.
- Sim, seria ótimo. Senhor Antônio, me desculpe por deixar tanta coisa assim em suas mãos, eu não estou dando conta de fazer tudo sozinha sem o Roberto...
- Dona Ana, todo mundo aqui entende muito bem pelo que a senhora está passando. A senhora e o senhor Roberto sempre foram ótimos patrões, ninguém aqui tem do que reclamar. A senhora sempre ajuda a gente. Quando a gente pode retribuir, nós ficamos felizes. E por falar nisso, fiz uns testes de biscoito aqui parecidos com os que a Bia pediu, será que a senhora pode levar uns para ela experimentar?
- Bom, se esse segredinho de vocês não tem a ver com o bolo... deve ter alguma coisa a ver com os biscoitos, certo?
- Dona Ana, é uma coisa boa, eu garanto! A senhora tem uma filha muito esperta e eu sei que a senhora vai gostar muito da surpresa. Eu, particularmente, achei a ideia genial!
- Ai, ai, ai... pelo visto nem adianta eu continuar perguntando mesmo. Vou só torcer para que vocês dois saibam o que estão fazendo.
- Três, dona Ana! Não se esqueça que a menina Gabriela também está ajudando na surpresa! E, talvez quatro, em breve, vamos ver...
- Quatro? Quem é o quarto integrante dessa “gangue”?
- Isso também é parte da surpresa, me desculpe! Hahaha!

O restante do dia correu sem incidentes na loja. Assim que chegou em casa, Bia veio correndo mostrar à mãe o cartão assinado por toda a turma.

- Olha, mamãe! Todo mundo assinou! A tia Kelly até pediu para as outras tias da escola assinarem também! Só não sei se o Miguel vai conseguir ler tudo, ele lê muito devagar! Acho que ele vai demorar uns três dias para ler todo o cartão!
- Bia, nem todo mundo é um geniozinho que nem você, que aprendeu a ler sozinha, né? Você precisa aprender a ter mais paciência com as outras crianças, querida!
- E o bolo, mamãe? Ficou bonito?
- Ainda não terminamos de decorar o bolo, Bia! Vamos fazer isso amanhã cedinho, assim que a doceria abrir. Depois já combinei com o senhor Wilson para ele pegar o bolo na doceria e levá-lo na escola na hora do recreio. Você mostrou meu bilhete para a tia Kelly? Para ela saber que horas o bolo vai chegar?
- Sim, mamãe, ela disse que tudo bem, a gente já combinou tudo quando o Miguel saiu para ir ao banheiro, todo mundo já sabe da festa surpresa, menos ele! Todo mundo acha que foi ideia da tia Kelly! Algumas meninas não gostaram disso, falaram que o Miguel é muito chato e não merece festa, mas aí a tia Kelly explicou que se a gente quiser que ele pare de brigar com todo mundo, a sala inteira tem que se esforçar para ser mais legal com ele também. Aí eu falei que pelo menos se não der certo, todo mundo vai comer um bolo delicioso! Hahaha!
- É isso aí, Bia! Se a gente não tentar mudar as coisas, a gente também não pode reclamar que tudo dá errado, né? Ah! O telefone está tocando! Vou lá atender! Bia, tem um recado do senhor Antônio para você na minha bolsa, você pega lá? Está no bolsinho pequeno, junto com um pacotinho de biscoitos que ele mandou também.
- Oba! Pode deixar que eu pego, mamãe!
- Alô?
- Ana, é a Cláudia. Eu encontrei alguns documentos do carro e do Roberto aqui, mas não sei se não esses que você quer. Você vai estar em casa no fim de semana? Nós podemos levar aí para você.
- Puxa, dona Cláudia, não precisa se preocupar, a senhora pode mandar por sedex se achar melhor.
- Bom, Ana, é que na verdade o Paulo tem um exame médico para fazer aí na sexta-feira, aí a gente ia aproveitar para visitar o túmulo do Roberto e ver nossa neta, se estiver tudo bem para você.
- Exame? Mas é alguma coisa grave? Vocês vão vir de outro estado até aqui por causa de um exame?
- Nós ainda não sabemos se é grave. Nosso médico aqui detectou um pequeno tumor e pediu um exame mais completo urgente, mas aqui no nosso estado só tem um hospital que faz esse exame e ele só tem vaga para daqui a 3 meses. Um amigo nosso conseguiu uma vaga aí na sua cidade, então temos que aproveitar, não é? Nosso médico acha que quanto mais cedo descobrirmos o problema, melhor. Porque dependendo do resultado, o tumor pode até acabar evoluindo para um câncer.
- Puxa, dona Cláudia, eu nem sei o que dizer... é claro que vocês podem vir aqui em casa, aliás, podem até ficar hospedados aqui com a gente! A Bia ia adorar, com certeza, ela adora ser paparicada pelos avós!
- Não se preocupe, Ana, o meu sobrinho Carlos vai conosco, ele já fez a reserva para a gente em uma pousada perto do hospital. O exame será na sexta, mas vamos ficar até sábado à noite, então se pudéssemos nos encontrar no sábado à tarde, isso seria ótimo.
- Bom, então por que vocês três não vêm almoçar aqui em casa sábado? Aí podemos ver os documentos e conversar o resto da tarde.
- Sim, acho que seria muito bom. Eu encontrei algumas coisas do Roberto aqui que eu gostaria que ficassem com a Bia, se você não se incomodar. Algumas fotos e coisas de quando o pai dela ela criança. Ela ainda é bem novinha, mas eu queria que ela tivesse alguma coisa para se lembrar dele.
- O Roberto era um super-pai, tenho certeza de que a Bia nunca vai se esquecer dele. Nos vemos sábado então, dona Cláudia?
- Está bem, Ana! Até sábado! Mande um beijo para a minha neta.
- Mamãe, pelo o que o senhor Antônio disse no bilhete, acho que você não vai precisar esperar muito para saber da surpresa, não! Ele falou que acha que semana que vem a gente já vai poder te contar tudo! E ele também escreveu que agora tem mais uma pessoa ajudando a gente e eu gostei da ideia dessa pessoa nova!
- Bia, sua avó lhe mandou um beijo, ela, o vovô e o Carlos, primo do seu pai, vão vir almoçar com a gente sábado!
- Que IN-CRÍ-VEL, mamãe! Eu adoro conversar com a vovó! Ela vai ficar aqui em casa?
- Não, eles vão ficar em um hotel, só vão passar a tarde aqui com a gente mesmo, é uma visitinha rápida.
- Ah, que pena. Mas você não vai me perguntar da surpresa, mamãe?
- Já entendi que não adianta. Fiz um monte de perguntas para o senhor Antônio hoje e ele não me disse absolutamente nada. O que me resta é ter paciência e esperar, né?
- Não fica triste, mamãe! Você vai gostar, eu sei!
- Não estou triste, Bia. É que a mamãe anda muito cansada ultimamente.
- Eu queria ser grande, aí eu ia poder te ajudar na doceria e você não ia ficar tão cansada, né, mamãe?
- Bia, você me ajuda muito sendo uma boa aluna na escola e deixando suas coisas arrumadas aqui em casa, não precisa fazer mais do que isso, está bem? Ué, é a campainha! Quem será a essa hora?
- Boa noite, Ana! Desculpe te incomodar a essa hora, mas eu fiz torta de milho, você quer um pedaço?
- Dona Rute! Entra, por favor! Bia, a dona Rute trouxe torta para a gente!
- Obaaaa! Dona Rute, a senhora adivinhou, a gente ainda nem jantou! Vou colocar os pratos na mesa para gente comer torta, tá, mamãe?
- Obrigada, Bia. Pega o chá na geladeira também, querida. E os copos!
- Ana, desculpe eu vir assim sem avisar, mas eu estou precisando desabafar, senão eu acho que vou explodir!
- A senhora brigou com seu filho outra vez, adivinhei?
- Como foi que eu fui ter um filho tão banana, heim? Aquele traste da minha nora faz gato e sapato dele e ele ainda fica lambendo os pés dela, vê se pode! A gente cria os filhos com tanto amor e carinho, aí eles se apaixonam e se esquecem de tudo o que a gente fez por eles, ingratos! Ai, desculpa, eu não deveria estar falando essas coisas na frente da Bia!
- Tá bom, já entendi, conversa de adulto. Mamãe, eu vou tomar banho, aí vocês duas podem conversar sozinhas enquanto isso. Mas conversem rápido porque eu sou bem ligeira no banho, tá?
- Obrigada, Bia! A gente come torta juntas quando você voltar.
- Essa sua filha é um amor! Quem dera eu ter uma filha assim tão compreensiva.
- O que foi que aconteceu dessa vez, dona Rute?
- Bom, você sabe que eu morava com o meu filho até ele arranjar aquela namoradinha piriguete dele, né? E tanto ela fez que eu não aguentei mais e vim morar sozinha, só para ficar longe dela. Mas eu disse para ele tomar cuidado, que ela só queria saber era do dinheiro dele, mas ele me ouviu? Claro que não! Deu até carro para ela! Agora ela está de graça com outro cara e quer que meu filho pague pensão! Vê se pode! Eles nem tem filhos, não são casados no papel, de onde que ela tirou essa ideia de pensão? E o idiota lá com pena dela! Ele acha que ela está “confusa”, mas que vai voltar para ele a qualquer minuto! Ah, faça-me o favor, mas é muito mané mesmo!
- Dona Rute, eu sei que não sou a melhor pessoa para dizer isso, mas... acho que a senhora precisa aprender a ser menos controladora! O seu filho já é adulto, tem o próprio negócio, acho que ele já provou que consegue se cuidar sozinho, não é? E se ele quebrar a cara com essa moça, bem, é a vida, a gente precisa errar de vez em quando para aprender, não é?
- Mas para que ele tem mãe? Se ele não ouve os conselhos da pessoa que mais se importa com ele no mundo, quem ele vai ouvir?
- A vida. A gente sempre quer o melhor para os nossos filhos, mas a gente não pode andar de mãos dadas com eles a vida inteira, senão eles nunca vão aprender a andar sozinhos. Eles vão cair, vão se machucar, a gente vai sofrer, mas tudo o que a gente pode fazer é estar lá para ajudá-los a se levantar e dizer para eles tentarem de novo. Foi isso que os nossos pais fizeram por nós, não foi?
- É, você tem razão, Ana. Não é fácil admitir, mas vou ter que aprender a deixar meu filho fazer suas próprias escolhas, mesmo que eu saiba como elas vão terminar.
- Dona Rute, acho que esse é um exercício que nós duas vamos ter que praticar. Desde que o Roberto se foi, eu estou ficando quase louca tentando manter tudo sob controle, mas o fato é que eu cheguei à conclusão de que preciso soltar um pouco as rédeas ou vou acabar em uma camisa de força. Tem tanta gente boa disposta a me ajudar e eu fico nessa paranoia de querer fazer tudo sozinha. Acho que eu também preciso praticar um pouco a delegar as coisas.
- Mamãe, já terminei, posso voltar para a sala?
- Pode sim, Bia, a torta já está no seu prato!
- Ana, obrigada pelo conselho. Acho que eu não iria conseguir dormir se eu não conversasse com alguém hoje!
- Não há de que, dona Rute! A senhora vive me salvando das enrascadas! Deixe-me retribuir um pouquinho, né? E foi até bom, porque assim eu começo a me auto-policiar também.
- Uhm, essa torta está uma delícia! Deve ter muita felicidade nela!
- Como é que é, Bia?
- Ah, nada não, dona Rute, segredinho que o senhor Antônio me contou!
- Pois é, agora eles dois vivem de segredinhos por aí...
- A Bia e o seu ajudante da doceria? Mas que coisa, heim? Agora até eu fiquei curiosa!
- Semana que vem, dona Rute, semana que vem você vai saber! Pode aguardar!
- Está bem, dona Bia! Vou aguardar ansiosamente!

domingo, 28 de setembro de 2014

2 colheres de felicidade - V

Na segunda-feira, enquanto Bia bolava um plano para a festa surpresa junto com a professora Kelly, Ana dava as últimas instruções a Pedro antes de ir se encontrar com o advogado.

- Pode deixar, Ana, está tudo sob controle! Não precisa se preocupar! Agora vá, você tem coisas mais importantes a resolver hoje! Boa sorte!
- Obrigada, Pedro. Se precisar de alguma coisa, me ligue!
- Se precisarmos de alguma coisa, a gente se vira, Ana! Você não pode cuidar de tudo ao mesmo tempo sozinha! Confie em nós, a gente vai manter tudo funcionando direitinho enquanto você resolve seus outros problemas, ok? Pode ficar tranquila! A doceria é o nosso sustento também, não vamos deixar que nada de errado aconteça com ela!
- Realmente eu não sei o que seria de mim sem vocês todos, obrigada!

E assim Ana se dirigiu ao escritório de advocacia. A burocracia toda era a segunda pior parte de se tornar viúva. A primeira era a insegurança de não saber se estava administrando bem a loja e criando direito sua filha. Roberto fazia muita falta nessas horas em que Ana precisava de alguém com quem conversar. Doutor Fabrício acabou atendendo Ana mais de meia hora depois do horário combinado. Ana já estava em puro estado de ansiedade.

- Dona Ana, boa tarde! Me desculpe pelo atraso, meu cliente anterior tem um caso bem complicado.
- Boa tarde, doutor Fabrício! O senhor já tem alguma novidade sobre o inventário do meu marido?
- É por isso que a chamei aqui, dona Ana. Eu examinei toda a documentação que a senhora me trouxe, mas me parece que ela está incompleta. Algumas coisas não estão batendo com o que o seu marido declarou no imposto de renda do ano passado.
- Não estão? Mas eu trouxe tudo o que eu achei! Roberto era muito cuidadoso com a documentação da doceria e eu também trouxe tudo que eu tinha da documentação pessoal dele e todos os comprovantes que consegui com a gerente do banco, o que mais pode estar faltando?
- Sim, não há de errado com a documentação da doceria, isso está impecável. Mas me parece que vocês venderam um automóvel e mais algumas coisas para conseguir o dinheiro para a loja, não é? São esses documentos que eu não encontrei. E se não estiver tudo certinho, mesmo que seja uma coisa menor, o caso vai ficar parado e vai demorar mais tempo até que você e sua filha possam usufruir da herança dele.
- Bem, nós vendemos o carro para os meus sogros, talvez meu marido tenha mandado toda a documentação para eles ao invés mandar apenas a cópia...
- Se a senhora puder entrar em contato com eles e pedir para que eles tragam os documentos, poderemos dar prosseguimento com o caso mais rapidamente.
- Meus sogros moram em outro estado, eles estiveram aqui para o enterro faz um mês, não sei se eles vão ter condições de vir para cá tão cedo outra vez, talvez eu possa pedir para que eles mandem tudo pelo correio.
- Eu não recomendaria, deve-se evitar mandar documentos originais pelo correio, sempre pode haver algum extravio. Mas se não houver outro jeito, peça para que eles providenciem uma cópia autenticada para guardar com eles antes de mandarem o original e peça que mandem tudo por sedex, é mais seguro. Aqui está a lista de coisas que estão faltando no dossiê.
- E eu nem sequer sei se esses documentos estão mesmo com eles... Bem, supondo que eu consiga o que falta, quanto tempo o senhor acha que demora até que a gente consiga desbloquear os bens?
- Esse é um processo bem demorado. O seu caso é até um pouco mais simples, porque não nenhuma disputa judicial, mas alguns chegam a demorar 3, 4 anos para mais!
- Ah, meu Deus, eu não posso esperar tanto tempo assim! Todo o dinheiro da doceria está na conta do Roberto, como eu vou pagar o 13º dos funcionários? E as férias?
- Senhora Ana, me desculpe, mas essa é uma coisa que eu realmente não entendi. Se vocês dois eram sócios na empresa, por que a conta ficou somente no nome dele? Se vocês tivessem aberto uma conta conjunta solidária ao invés disso, você não teria nenhum problema para sacar o dinheiro na ausência dele!
- Sim, eu sei, mas agora não há o que fazer. Na época em que a gente precisou abrir a conta, minha filha ficou doente e eu fiquei praticamente duas semanas inteiras em casa, cuidando dela. Eu disse ao Roberto para abrir a conta sozinho, para não atrasar nosso cronograma com os fornecedores e com os credores, depois eu iria ao banco com ele e nós mudaríamos a conta para conjunta. Mas as coisas foram acontecendo como uma avalanche e eu acabei não indo resolver isso. Nunca pensei que perderia meu marido assim tão cedo, essa coisa da conta parecia tão banal na época, até porque era ele quem cuidava de tudo. Eu nunca precisei me preocupar com as contas da doceria, eu não entendo nada de administração. E agora estou me sentindo completamente perdida, não sei como vou dar essa notícia aos funcionários...
- Calma, dona Ana! Não vamos entrar em desespero ainda, está bem? O inventário vai mesmo demorar pelo menos um ano para sair, se conseguirmos a documentação que falta. Mas há outras saídas. Podemos tentar conseguir a pensão do seu marido e o seguro mais rapidamente, talvez até a tempo de pagar o 13º dos funcionários sem precisar recorrer a nenhum empréstimo.
- Pensão? Seguro? Eu nem sabia que tinha direito a isso.
- Pois é, mas o seu marido cuidou disso tudo para a senhora. Olha, aqui estão as instruções que a senhora precisa seguir para solicitar ambos. A senhora precisa ir pessoalmente nestes endereços, levando esses documentos. Já aviso que o atendimento é um pouco demorado, talvez a senhora acabe gastando de 2 a 3 horas em cada lugar. A senhora deve começar a receber um ou dois meses depois, mas assim que receber vai vir tudo o que tiver acumulado retroativo à data de falecimento. Se a senhora conseguir fazer isso ainda essa semana, deve receber tudo no final de novembro, a tempo de pagar a primeira parcela do 13º dos funcionários.
- Sim, isso resolveria boa parte dos meus problemas, só tenho medo dessa incerteza quanto ao tempo que demora.
- Infelizmente não há o que fazer quanto a isso. Mas, de qualquer forma, primeiro a gente tem que fazer a nossa parte, para depois poder correr atrás dos nossos direitos, não é? Não dá nem para reclamar da burocracia se gente nem tentar dar entrada na papelada primeiro.
- Isso é verdade. Bom, eu já tive que deixar a doceria sozinha hoje mesmo, vou aproveitar e ver se dá tempo de resolver pelo menos uma parte disso tudo. E vou ligar para os meus sogros à noite e ver se consigo ajuda com os documentos do carro. Obrigada, doutor Fabrício. O senhor tem esse poder de me deixar tensa e aliviada ao mesmo tempo, deve ser algum dom especial dos advogados.
- Hahaha! Pode contar comigo sempre, dona Ana! E obrigado pelos brigadeiros, heim? Seus doces são sempre bem-vindos!
- Prometo que faço um bolo especial para o senhor quando esse pesadelo todo terminar!
- Então vou tentar terminar com ele o mais rápido possível! Não se esqueça de me avisar se conseguir o restante dos documentos, está bem?
- Aviso sim, pode deixar. Boa tarde!

E assim Ana passou o resto da tarde em filas intermináveis, tentando descobrir como fazer para receber a pensão e o seguro de vida do marido. À noite, com os pés doendo de tanto ficar em pé, ligou para os sogros perguntando dos documentos. A sogra ficou de procurar e retornar a ligação no dia seguinte. Depois deixou Bia conversando com os avós e foi tomar um banho. Quando terminou, viu que havia uma mensagem de Pedro no celular, dizendo que tudo estava bem na doceria e que todo mundo já estava indo para casa. Ana estava exausta. Deitou-se na cama e teria dormido se Bia não entrasse no quarto perguntando o que teriam para o jantar.

- Ah, filha, mamãe está tão cansada hoje, será que podemos apenas esquentar a pizza que sobrou de ontem?
- Tinha muita gente na doceria hoje, mamãe? É por isso que você está cansada?
- Não, querida, na verdade eu não sei. Mamãe teve que sair para resolver outras coisas, coisas do papai.
- Mas se o papai morreu, o que você tem que resolver?
- Coisas de adulto, Bia. Documentos, contas, essas coisas. Mamãe teve que ir a vários lugares, ficou em pé na fila várias horas.
- Então depois que a gente comer a pizza, eu vou ler para você hoje, está bem, mamãe? Eu fico lendo até você dormir! Depois te dou beijinho de boa noite e vou para o meu quarto, que nem você faz comigo! Só, por favor, não se esquece do bolo do Miguel amanhã, tá, mamãe? Porque eu já falei para a tia Kelly da surpresa e quase todo mundo já assinou o cartão, eu não quero que todo mundo pense que eu sou mentirosa!
- Ah, puxa, Bia, não se preocupe, eu já falei com o senhor Antônio, ele vai me ajudar a fazer o bolo. E por falar nisso, quase me esqueci! Ele mandou um bilhete para você, respondendo o que você perguntou. O que é que vocês dois estão armando, heim? Cheios de segredinhos! E eu nem posso saber?
- Ainda não, mamãe, só quando estiver tudo pronto! E a Gabi também vai me ajudar, ela prometeu!
- Gabi? Até a sua amiga da escola sabe e eu não?
- Não, mamãe! É a Gabi SUA amiga! Aquela que me ajudou a fazer o cartão de aniversário quando eu fui na doceria!
- Ah, é? E sobre o que vocês duas conversaram, heim?
- Segredo, ué. Você não me engana, mamãe, eu não vou te contar!
- Está bem, filha, hoje eu estou cansada demais para discutir. Vamos comer pizza e dormir!
- Mas eu vou ler o livro da Matilda para você antes, heim?
- Está bem, Bia! Eu vou adorar!

sábado, 27 de setembro de 2014

2 colheres de felicidade - IV

No dia seguinte, Ana e Bia acordaram cedinho e foram para a doceria. Bia ficou fazendo sua lição de casa em uma mesa, enquanto Ana atendia os clientes e verificava se estava tudo em ordem com a loja. Aproveitou 2 minutinhos em que a doceria estava mais tranquila e ligou para saber como Pedro estava.

- Oi, Ana, obrigado por ter ligado! Espero que esteja tudo bem aí sem mim.
- Pedro, você não tem ideia da falta que você faz aqui! Mas está tudo bem, não se preocupe, só liguei para saber como você está.
- Já estou bem melhor, o colírio está fazendo maravilhas! Segunda-feira estarei aí no horário de sempre, pode deixar!
- Você acaba de tirar um peso enorme das minhas costas dizendo isso! Vou ter uma reunião com o doutor Fabrício na segunda à tarde, fico mais aliviada em saber que você vai estar aqui para cuidar de tudo no meu lugar.
- O advogado? Será que ele já conseguiu algum progresso com a papelada do Roberto?
- Acho que é justamente sobre isso que ele quer conversar comigo. Essa burocracia toda me deixa louca!
- Calma, Ana! Vai dar tudo certo, você vai ver. E se precisar, pode contar comigo, você sabe, né? Eu queria estar aí agora te ajudando, mas...
- Pedro, é a sua saúde. Prometa que você vai se cuidar, isso sim vai me deixar mais tranquila.
- Sim, senhora, chefe!
- Hahaha! Não precisa me chamar assim, né? Bem, eu tenho que desligar, a doceria está começando a encher novamente. Até segunda!
- Até! E obrigado por ter ligado!

Duas senhoras olhavam os doces no balcão.

- Bom dia, posso ajudá-las?
- Esse doce aqui é do que?
- Massa folhada com recheio de creme de avelã e pedacinhos de chocolate.
- Meu Deus! Isso deve ser divino! É esse mesmo que eu vou querer! E um cafezinho, por favor! E você, Maria, já escolheu?
- Estou em dúvida entre esse com pêssego e damasco e aquele outro com... gengibre e hortelã? É isso mesmo? Que doce mais exótico! Ah! E olha esse aqui, bomba de baunilha com lichia! E são todos tão bonitos que dá até dó de comer, né?
- Ah, pode escolher qualquer um, tenho certeza de que são todos deliciosos! Já é a quarta vez que eu venho aqui e todos os doces que eu provei até agora são maravilhosos!
- Bem, vamos fazer assim: vou comer o de lichia agora e levar os outros dois para viagem, pode ser? Assim já vou ter sobremesa para a janta!

Depois do almoço, Beatriz quis conhecer a cozinha. Ana explicou a ela que só poderiam ficar lá dentro por 5 minutos e que elas precisavam lavar as mãos e usar luvas e touca, porque tudo na cozinha tinha que permanecer perfeitamente limpo.

- Mas, mamãe, como eu vou aprender a fazer biscoitos em 5 minutos?
- Bia, querida, isso a mamãe vai ter que te ensinar em casa, está bem? Só depois que você já estiver grande e tiver treinado muito é que você vai poder vir fazer biscoitos na doceria. Hoje eu só vou mostrar como as coisas funcionam, ok? E aí, depois, se o senhor Antonio deixar, você pode provar um dos biscoitos novos que ele está criando.
- Quem é o senhor Antonio?
- É o meu assistente da cozinha, Bia. É ele quem me ajuda a fazer os doces da loja. Senhor Antônio, essa é a Bia, minha filha.
- Ah, sim, eu me lembro dela! Ela veio aqui uma vez quando era bem pequenininha, como ela cresceu! Já está uma moça!
- Eu não me lembro de ter vindo aqui na cozinha antes, acho que eu era muito pequena mesmo! O que você está fazendo, Senhor Antônio?
- Estou testando novas receitas de biscoitos, você quer experimentar algum? Tem de coco, de limão, de chocolate.
- Uhm... devem estar todos muito gostosos! E aqueles biscoitos da sorte, você também sabe fazer?
- Aqueles que vêm junto com a comida chinesa? Bem, esses eu nunca tentei fazer, mas vou dar uma pesquisada. Se eu conseguir fazer, peço para a sua mãe levar um pacote para você comer e avaliar, que tal?
- Já estou tendo umas ideias aqui, acho que vai ser muito legal!
- Que tipo de ideia, dona Bia?
- Ainda é segredo, mamãe! Tenho que pensar direitinho antes de te contar!
- Hahaha! A Bia é tão esperta quanto o meu filho! Essas crianças de hoje em dia dão de 10 a zero na gente!
- Puxa, eu nem lembrava que você tinha filhos, Antônio!
- Tenho um garoto de 8, o Rafael, e uma menina de 10, a Bianca.
- Bianca parece com Bia, né? Acho que ela deve ser muito legal!
- Sim, sim, eles não dão trabalho, são uns amores.
- Bom, dona Bia, a visita à cozinha terminou, precisamos deixar o Senhor Antônio trabalhar em paz, né? A doceria não pode ficar sem produtos só porque nós ficamos batendo papo com o cozinheiro o dia todo.
- Só mais um minutinho, mamãe? Eu nem vou falar nada, só quero ver como ele faz os biscoitos! Só ver, mamãe! Por favor!
- Ah, tudo bem, dona Ana! Olha aqui, Bia! Está vendo? A gente coloca todos os ingredientes nessa batedeira grande e espera a massa ficar lisinha. Depois abre a massa com um rolo, até ficar bem fina. Aí você pega esses cortadores aqui e aperta a massa, para ela ficar no formato que você quer. Depois é só colocar na assadeira e deixar no forno até ficar pronto.
- Mas qual é o segredo? Por que os biscoitos das outras lojas não ficam tão gostosos quanto os nossos?
- Bom, tem dois motivos, um todo mundo sabe: a gente usa só os melhores ingredientes. E o outro... é que tem que colocar felicidade!
- Como faz isso? Eu nunca vi vender felicidade para gente colocar na comida!
- Hahaha! Felicidade não se vende mesmo, Bia! Mas quando você cozinha, você tem que fazer isso com prazer, sabe? Se você fica feliz quando está cozinhando, as outras pessoas também ficam felizes quando comem a sua comida. Esse é o segredo!
- Ah! Por isso que as almôndegas que eu fiz com a dona Rute ficaram tão boas! Porque a gente colocou bastante felicidade!
- Isso mesmo! Mas esse é um segredo nosso, heim? Não vamos sair espalhando por aí!
- Isso me deu mais ideias! Mas eu não vou contar para ninguém, senhor Antônio! Obrigada por me ensinar a fazer os biscoitos, agora eu vou praticar bastante em casa com a mamãe até virar uma doceira tão boa quanto vocês dois algum dia!
- Eu é que agradeço pela visita, Bia! E pode deixar que eu vou me lembrar de tentar fazer biscoitos da sorte para você!

Ana e Bia voltaram para a parte da frente da loja. Bia foi fazer o cartão de aniversário do Miguel em uma mesa e Ana voltou para trás do balcão de doces. A doceria fechava mais cedo aos sábados e pouco mais de meia hora antes de encerrar o expediente, a menina loira apareceu por lá.

- Boa tarde! Puxa, eu estava mesmo querendo falar com você sobre o bilhete que você deixou embaixo do prato outro dia! Preciso muito lhe agradecer pelas palavras, você não sabe como elas me fizeram bem! E eu nem sei o seu nome, desculpe!
- Meu nome é Gabriela, eu venho sempre aqui, moro no prédio aqui do lado. Seus doces são divinos, eu só não como mais porque senão eu vou acabar engordando! E eu notei que você estava mesmo um pouco tensa aquele dia, Ana! Eu percebi que o Roberto parou de vir trabalhar, aí fiquei sabendo do acidente e tal... como o Pedro também não estava, imaginei que você estava mesmo passando por um dia difícil. Que bom que consegui te ajudar!
- Nossa, mas você sabe os nomes de todo mundo aqui? Estou ainda mais impressionada!
- Ah, não é nada de mais, vocês usam pins com seus nomes, eu só acabei decorando de tanto vir aqui! Sabe, eu estou no último ano da faculdade e esse maldito TCC está me deixando louca, aí toda vez que eu acho que vou surtar, eu desço aqui para comer um doce! Eles são tão incríveis que eu acabo saindo daqui até mais feliz! Mas, posso fazer uma sugestão? Seria ótimo se vocês começassem a vender doces diet! A minha dieta agradece!
- Sugestão anotada! E hoje o doce é por conta da casa! Em agradecimento pela sua boa ação do outro dia!
- Verdade? Eu juro que fiz aquilo sem segundas intenções, mas eu aceito o agrado sim! Deixa eu ver... hey, esse é novo, não? Ainda não provei! Mousse de maçã com calda de ameixa? Parece muito bom!
- Você vai adorar! A gente gosta de testar novas receitas aqui. Até porque a gente usa muita fruta, né? Aí tem que criar receitas com as frutas da estação, por isso que o nosso cardápio é tão rotativo, só usamos ingredientes frescos.
- E é por isso que tudo aqui é tão bom! Aquela menininha ali fazendo recortes é a sua filha?
- Sim, eu tive que trazê-la hoje, não tinha com quem deixá-la. O nome dela é Beatriz, mas pode chamá-la de Bia.
- Será que ela se incomodaria se eu sentasse ali com ela? Eu faço faculdade de design, adoro ver criança fazendo arte!
- Bia, venha aqui um minutinho, por favor!
- Oi, mamãe! Já estou quase terminando o cartão do Miguel!
- Bia, essa é a Gabriela, ela é uma amiga da mamãe e queria ver o seu cartão. Ela pode sentar à mesa com você?
- Claro que sim! Na minha sala tem uma menina chamada Gabriela, a gente chama ela de Gabi, posso te chamar de Gabi também?
- Pode sim! Vamos lá ver esse cartão, Bia! É para alguém especial?
- É para um menino da escola. Eu não gosto muito dele, mas a mamãe disse que...

E assim terminou o expediente na doceria aquele dia. Gabriela e Beatriz ficaram conversando até a loja fechar, depois a primeira voltou para casa para estudar e Bia e Ana foram passear na livraria da esquina para escolherem um livro novo. Bia se encantou com um chamado Matilda, sobre uma menininha muito esperta que aprontava muita bagunça, mas sempre com a intenção de ajudar sua família e seus amigos. “Ela se parece comigo, mamãe!”, disse ela à mãe. E naquela noite, antes de dormirem, as duas leram juntas o primeiro capítulo do livro e sonharam com biscoitos gigantes e naves espaciais que soltavam raios de chocolate.

Domingo era dia de botar a casa em ordem. Mesmo assim, no fim do dia, depois da faxina, mãe e filha foram fazer biscoitos. Ficaram muito bons, mas mesmo assim Bia não ficou satisfeita. Escreveu a receita em um papel e colocou um bilhete embaixo. Pediu para que a mãe o entregasse para o senhor Antônio no dia seguinte, mas a fez prometer que não o leria. Ana ficou curiosa, mas respeitou o desejo da filha. No fim do dia, ela estava tão cansada que acabou pedindo uma pizza para as duas. “Não é porque sou cozinheira que preciso cozinhar todos os dias, não é? Acho que posso me dar uma folga de vez em quando.” – foi o que ela pensou. E dessa maneira terminou o fim de semana.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

2 colheres de felicidade - III

No dia seguinte, Ana foi à escola de Beatriz mais cedo, para tentar conversar com a professora Kelly.

- Ana! Que bom que você conseguiu vir hoje, eu queria mesmo lhe explicar sobre ontem.
- Sim, dona Rute me disse mais ou menos o que aconteceu. Eu já tinha ouvido falar sobre o Miguel, mas acho que dessa vez o caso foi um pouco mais grave, não?
- Está sendo bem difícil lidar com ele ultimamente. A diretora Paula chegou até a pensar em expulsá-lo, mas a professora Tereza, nossa psicóloga, e eu concluímos que isso não o ajudaria em nada e ainda poderia ser ruim para a escola, já que os pais dele são pessoas muito influentes.
- Desculpe-me, mas que tipo de ajuda exatamente ele precisa? Achei que a segurança dos outros alunos que convivem com ele é que deveria ser prioridade!
- Sim, claro, já montamos um esquema de guerra para que ele não se meta em nenhuma briga outra vez, todos os funcionários foram instruídos a ficarem de olho nele no intervalo. Mas, entenda, esse é o motivo pelo qual eu a chamei aqui. Normalmente nós não falamos sobre isso abertamente com outros pais, mas acho que você merece saber que tipo de menino ele é. Bem, como disse antes, ele é filho de pessoas influentes. Chega todo dia aqui com roupas, brinquedos e materiais novos. Então quem não o conhece pode pensar que ele é apenas um garoto mimado que não conhece limites, certo? Que pensa que pode fazer o que quiser e nada acontecerá a ele porque os pais vão protegê-lo, não é? Pois eu lhe digo que é justamente o contrário. Os pais dele nunca vieram a uma reunião. Até na hora de fazer a matrícula, é algum funcionário da casa quem traz uma procuração. A professora Tereza já conversou com ele diversas vezes. Ele se faz de durão, mas no fundo é apenas uma criança tentando conseguir atenção. Pelo que descobrimos, os pais sequer conversam com ele! É sempre a cozinheira ou o motorista dos pais quem compra as coisas para ele. Ele foi criado pelos empregados desde que nasceu, não tem noção de família.
- Mas isso é monstruoso! E não há nada que possa ser feito?
- Normalmente nós entramos em contato com o serviço social quando desconfiamos de maus tratos contra algum aluno, mas esse caso é diferente. Ele sempre está bem arrumado, com roupas novas, bem alimentado, ele tem tudo que o dinheiro pode comprar. E ele não apanha dos pais, nem sofre qualquer tipo de tortura, exceto, talvez, o pior tipo que existe: a indiferença. Seria muito difícil conseguir tirá-lo dos pais e nós nem sabemos se ele realmente quer isso. Consegue entender? Não sabemos o que seria pior.
- Entendo, mas... bem, os outros alunos não podem continuar sofrendo bullying calados, não acha? Eu não vou deixar que minha filha chegue em casa machucada outra vez!
- Não vai acontecer, eu prometo. Ontem depois da briga, o Miguel foi chamado na sala da diretora Paula e ela e a professora Tereza conversaram com ele. Eu reuni o resto da turma e também tive uma conversa séria com eles, tão séria quanto é possível com crianças nessa idade. Nós três decidimos fazer um trabalho de interação com a turma, ajudá-los a trabalhar melhor em equipe. Mostrar que eles precisam se dar bem uns com os outros se quiserem alcançar um objetivo. Sim, nós mandamos um bilhete na agenda do Miguel, mas, por experiência própria, acho pouco provável que isso vá surtir algum efeito. Vamos ter que nos virar sem a ajuda da família dele se quisermos resolver isso ainda esse ano.
- Eu fiquei de ter uma conversa com a Bia hoje à noite, mas agora nem sei bem o que eu deveria dizer a ela. E esse aluno novo? Como ele é?
- Ele ainda está muito tímido, ainda mais depois de tudo o que aconteceu. Mas parece que a conversa de ontem serviu para alguma coisa, os outros alunos já estão tentando puxar papo com ele, então acho que vai ficar tudo bem. Miguel também pediu desculpas a ele na frente de todo mundo, acho que por um lado ele odiou passar vergonha outra vez, mas por outro foi bom para ele saber que alguém se importa o suficiente para pelo menos corrigi-lo quando ele faz algo errado. Vamos ter que esperar para ver como ele vai se comportar hoje, não é?
- Bem, fico um pouco mais aliviada por saber que algumas providências já foram tomadas. Se houver qualquer outra coisa que eu possa fazer para ajudar, por favor, não deixe de me avisar.
- Que bom que você entendeu, Ana. Eu sei que as coisas não devem estar sendo fáceis ultimamente, mas você tem a sorte de ter uma filha maravilhosa! A Bia é muito querida aqui na escola e ainda é uma excelente aluna!
- Ah, sim! Por falar nisso, dona Rute me contou que ela já sabe ler, eu pensei que a turma ainda estivesse sendo alfabetizada.
- Você não sabia? A Bia já entrou na turma sabendo ler! Ela ainda tem um pouco de dificuldade com a letra cursiva, mas lê e escreve perfeitamente em letra de forma! Parece que todas aquelas leituras antes de dormir fizeram milagres!
- Eu tenho um pequeno gênio em casa e não sabia? Eu devo ser mesmo uma mãe muito desnaturada!
- Muito pelo contrário, Ana! A Bia sempre desenha você como uma super-heroína! Você é a pessoa que ela mais admira no mundo. Talvez seja por isso que ela e o Miguel vivam brigando, acho que ele tem um pouquinho de inveja por ela ter uma mãe tão atenciosa.
- Puxa, assim eu fico até sem graça. Mas, obrigada, professora Kelly. Eu tenho que ir agora, estou atrasada para abrir a doceria e acho que seus alunos já devem estar esperando na fila.
- Nossa, é verdade, preciso correr! Mais uma vez obrigada por ter vindo conversar comigo, dona Ana!
- Eu é que agradeço! Bom dia! Até mais.

O dia na doceria foi corrido como sempre, mas dessa vez não ocorreu nenhuma surpresa, agradável ou não. Ana passou o dia prestando atenção nos clientes, queria ver se a menina loira iria aparecer, ela queria agradecer pelo bilhete da noite anterior, mas infelizmente ela não compareceu. Ana foi para casa pensando na conversa que ela teria com a filha e se perguntando se Pedro já estaria bem o suficiente na segunda-feira. Ela teria uma reunião com o advogado que estava cuidando da papelada do marido e ficaria mais tranquila se soubesse que Pedro estaria lá para cuidar da doceria na ausência dela. Talvez ela devesse promovê-lo a gerente. Ela e o marido já haviam conversado sobre a possibilidade de torná-lo vice-gerente para que ele ficasse encarregado da loja quando Roberto precisasse ficar fora da loja por qualquer motivo. Mas agora Ana teria que aprender a administrar a loja antes de fazer qualquer grande alteração em seu funcionamento. Ela precisava ser cuidadosa, já que agora ela era a única pessoa com quem a filha poderia contar. Qualquer deslize e as duas estariam bem encrencadas.

- Uma dose de paciência e muita perseverança, acho que era isso que dizia a receita, não é?
- Você está falando sozinha, mamãe?
- Boa noite, filha! Como foi na escola hoje? Você e o Miguel não brigaram outra vez não, né?
- Nós não brigamos, mamãe! Ele ficou me olhando feio o dia todo, mas eu nem liguei, fingi que nem era comigo!
- Filha, o que foi que você disse para ele ontem para ele querer te empurrar?
- Eu só disse a verdade, mamãe! Disse que ele era tão metido e chato que ninguém gostava dele, nem a mãe dele! Os meninos só fingem que são amigos dele porque ele tem brinquedos legais que ninguém mais tem, mas quando ele está longe eu sempre ouço todo mundo falar que ele é muito chato!
- Ai, Bia... olha, eu sei que eu disse que a gente nunca deve mentir, mas a gente também precisa tomar cuidado com o jeito com que nós dizemos a verdade!
- Ahm? Como assim?
- Pode até ser verdade que ninguém goste dele, mas não é fácil para ninguém ouvir esse tipo de coisa, entende? Tenta se colocar no lugar dele, como você se sentiria se alguém dissesse isso para você?
- Eu ia dizer que é mentira, ué! Eu tenho um monte de amigos na escola, até as tias gostam de mim!
- Sim, mas e se você fosse ele e ninguém gostasse de você? E se a sua mãe nunca aparecesse na escola, nem nas reuniões, nem nas festinhas, você não ficaria triste?
- Eu ficaria muito, muito triste, mamãe! Mas, também, quem manda ele ser tão chato?
- Bia, eu acho que ele não quer ser chato de propósito, entende? Mas se ninguém quer ser amigo dele de verdade, ele acaba tendo que chamar a atenção de outras maneiras. Você já experimentou conversar com ele sem brigar? Uma vezinha só?
- Mas ele não gosta de mim! Acho que ele não gosta de ninguém!
- Talvez ele só seja assim porque acha que ninguém gosta dele também. Vamos fazer o seguinte: algum dia quando ele estiver sozinho no intervalo, vá lá falar com ele. Mas com muuuuita calma, está bem? Tenta descobrir do que ele gosta ou quando é o aniversário dele ou qualquer coisa assim. Talvez se ele perceber que você não quer brigar com ele, ele também pare de querer brigar com você!
- Mas eu já sei essas coisas, mamãe! O aniversário dele é semana que vem, na quarta-feira! E ele gosta de um desenho chamado T-Rex 20, todos os meninos gostam desse desenho! Ele sempre leva os bonequinhos dele na escola, por isso que os meninos deixam o Miguel brincar com eles.
- Ah, é? E como você sabe que o aniversário dele é semana que vem? Vai ter festinha?
- Eu sei porque a gente tem um calendário com os aniversários de todo mundo na nossa sala, ué. A cozinheira do Miguel sempre manda um bolo para ele, mas é só também. Nem tem comparação com os bolos que você faz, mamãe! As minhas festas de aniversário na escola são sempre as melhores, todo mundo elogia seus doces!
- Uhm... e se a gente fizesse um bolo do T-Rex 20 para o Miguel e mandasse entregar na escola no dia do aniversário dele, você acha que ele ia gostar?
- Ah, ele ia amar, com certeza! Ele nunca teve um bolo de verdade no aniversário dele! Mas, mamãe, eu não quero que ele saiba que foi você que fez o bolo, ele vai achar que eu quero ser namorada dele, eca!
- Hahaha! Namorada? Não acha que vocês ainda são muito novinhos para namorar, não, dona Beatriz? Bom, eu acho que seria mais legal mesmo se fosse uma surpresa! Você me ajuda? Eu faço o bolo, mas você vai ficar com as missões mais difíceis, ok?
- Eu posso ajudar? Ebaaaaa! Missão secreta: bolo do dinossauro maluco! O que eu tenho que fazer, mamãe?
- Bom, primeiro, eu tenho que saber como é esse T-Rex 20, né? Você consegue uma foto dele para mim?
- Facinho! Vou pegar as revistas, sempre tem propaganda dos bonequinhos do T-Rex 20 nelas! Deixa eu ver... tem esta aqui e... não! Esta está melhor! E está bem grande, mamãe! Acho que esta serve para colocar no bolo!
- Uau, que rapidez, heim? Bem, a outra parte da missão é ultrassecreta, o Miguel não pode nem desconfiar, heim? E você só vai ter segunda e terça para fazer tudo!
- Estou curiosa! O que é que eu tenho que fazer, mamãe?
- Você vai ter que pedir para todo mundo da sua turma assinar o cartão de aniversário dele! Mas tem que falar que ninguém pode contar nada para o Miguel, heim? Se precisar, pede ajuda para a tia Kelly! Você acha que todo mundo consegue pelo menos escrever o próprio nome no cartão? Assim ele não fica sabendo de quem foi a ideia do bolo e não vai achar que você quer ser namorada dele!
- Mamãe, você é a melhor mãe do mundo! Que super-ideia a sua! Eu posso fazer eu mesma o cartão, o que você acha? Eu posso recortar os desenhos do T-Rex 20 das revistas e colar em um papel, aí eu deixo espaço para todo mundo escrever o nome embaixo. Você me ajuda a fazer isso amanhã?
- Ah, querida, essa era a outra coisa que eu tinha que te falar... Eu vou ter que ir para a doceria amanhã!
- Mas amanhã é sábado, mamãe! Não é o Pedro que fica lá aos sábados?
- Normalmente sim, mas ele está doente, Bia. Foi por isso que eu não consegui te buscar ontem na escola também.
- E eu vou ficar com quem?
- Ai... é tanta coisa que acabei nem pensando nisso ainda... acho que vou ter que ver se a dona Rut...
- Já sei, mamãe! Eu posso ir trabalhar com você! Ontem mesmo você disse que ia me deixar ir com você algum dia! Eu posso levar as revistas e fazer o cartão lá! Eu posso até fazer a minha lição de casa lá! E depois quando eu terminar tudo eu posso te ajudar na cozinha! Você me ensina a fazer biscoitos?
- Bia, eu não sei...
- Por favor, por favor, por favor! Eu juro que vou me comportar!
- Ah, querida, é que é muito tempo, eu tenho medo que você comece a ficar entediada, não vou poder sair no meio do dia para te trazer para casa!
- Eu não vou ficar entediada, mamãe! Eu levo meus livros e fico vendo as figuras e desenhando! Não vou pedir para voltar para casa mais cedo, eu prometo!
- Vendo as figuras? Bia, a tia Kelly me disse que você já sabe ler e faz tempo! Por que nunca me contou?
- Ah, era segredo, droga!
- Bia, mas isso é IN-CRÍ-VEL! Não vejo motivo para você não ter me contado antes!
- Ah, mamãe, é que eu gosto quando você lê para mim antes de eu ir dormir. E agora que você sabe que eu já sei ler, você nunca mais vai querer ler comigo...
- Oh, querida, não precisa chorar, não! É claro que eu vou continuar gostando de ler com você! Mas também é ótimo saber que você já consegue ler sozinha, porque isso significa que você pode ler muitas outras coisas que você quiser, mesmo quando eu não estiver com você! Acho que isso merece uma comemoração! Amanhã, depois que a gente fechar a doceria, vamos comprar um livro novo para nós duas lermos juntas! Eu leio um parágrafo e você lê outro, que tal?
- Quer dizer que eu posso ir na doceria com você amanhã?
- Sim, promessa é promessa, não é?
- YUPIIIII!!!! Eu te amo, mamãe!
- Eu também te amo, Bia! Agora já para o chuveiro! E depois arrume todas as coisas que você vai precisar para amanhã, heim? Caderno, livros, revistas, tesoura, cola, caneta... porque temos que sair de casa bem cedinho!
- Está bem, mamãe! Podemos ter macarrão para o jantar hoje?
- Ok, vou preparar uma macarronada para nós enquanto você toma banho. Espaguete à la dama e o vagabundo saindo!
- Você é a melhor mãe do mundo! Pena que o papai não está aqui, ele adorava sua macarronada!
- Seja lá onde ele estiver, ele tem muito orgulho de você também, filha! Mas agora chega de enrolar e vá já para o chuveiro!
- Estou indo, estou indo, estou iiiiiiiindoooooo...

2 colheres de felicidade - II

- Dona Rute, mil perdões, sei que está tarde, espero que a Bia...
- Mamãe, mamãe! A gente fez almôndegas! Guardamos algumas para você! Venha comer! A dona Rute disse que eu levo jeito para cozinhar, talvez um dia eu seja uma doceira tão boa quanto você!
- Bia, querida, o que aconteceu com você na escola? Por que você brigou com o seu amiguinho?
- Ana, querida, vamos deixar essa conversa para depois, venha jantar conosco, a Bia me ajudou a fazer um jantar especial para você!
Ana olhou para dona Rute e captou que aquela seria uma conversa de adultos. Ficou preocupada, mas entendeu. Jantaram juntas, falaram sobre amenidades e comeram a torta de maçã que Ana havia trazido da doceria. Depois Ana convidou a vizinha para tomar um café em sua casa, assim ela poderia colocar Beatriz para dormir e depois descobrir o que havia acontecido na escola afinal.
- Mamãe, você ainda não disse que o achou do jantar!
- Estava tudo uma delícia, querida! Quem sabe eu não consiga levá-la para me ajudar na doceria algum dia nas férias, que tal?
- Isso seria IN-CRÍ-VEL, mamãe! Você jura que deixa? Posso ajudar a fazer os biscoitos?
- Sim. Mas agora é hora de dormir! Conversaremos mais sobre isso e... outras coisas amanhã, está bem?
- Mamãe, eu juro que não tive culpa! Foi o Miguel! Ele que começou a caçoar de todo mundo, eu falei para a tia Kelly e ela não fez nada!
- Bia, eu ainda não sei o que aconteceu. Amanhã irei falar com a sua professora direitinho, então quando eu voltar do trabalho nós duas teremos uma boa conversa, está bem? Agora feche os olhos e durma com os anjos! Boa noite, filha.
- Boa noite, mamãe.

Ana fechou a porta do quarto da filha e foi para a sala conversar com a vizinha.

- Ela já dormiu?
- Já. Dona Rute, eu realmente não sei como agradecê-la por...
- Ora, deixe disso! Você sabe que é como uma filha para mim! Ao contrário daquele ingrato do meu filho de sangue...
- Vocês brigaram outra vez?
- Bem, sim, mas essa história pode ficar para outro dia. Eu quero saber como você está! Tenho estado tão preocupada com você desde o acidente! Você está cada vez mais magra, nem parece que trabalha em uma doceria!
- Não tem sido fácil. Estou tendo que aprender a administrar a loja do zero. A doceria tem alguns clientes fiéis, mas mesmo assim eu não sei se estou fazendo a coisa certa. Roberto tinha um planejamento esquematizado para um ano inteiro, ele sabia criar planos de contingência quando alguma coisa saia da linha, mas eu meio que acabo fazendo tudo de improviso. Acho que estou estragando o planejamento inteiro e tenho medo de acabar perdendo a loja e ficando sem emprego. Eu sei cozinhar, é o que eu faço de melhor, mas cuidar de um negócio...
- Disso eu vou ter que discordar, amiga. Seus doces são divinos, mas eles não são o que você faz de melhor. Você é uma mãe ainda melhor do que é uma doceira!
- Será que sou, dona Rute? E essa briga da Bia na escola hoje? Eu mal tenho tido tempo para ficar com a minha filha! Chego em casa tão cansada que muitas vezes nem consigo ler para ela antes que ela durma.
- Bom, eu tenho uma novidade para você então. A Bia já sabe ler!
- O que? Como assim? Na última reunião, a professora disse que...
- Que a turma está sendo alfabetizada agora, certo? Mas a Bia já sabe ler e acho que o faz já há muito tempo! Quando estávamos fazendo as almôndegas hoje, ela meio que leu a receita em voz alta, sem querer. Eu a elogiei por ser tão esperta e ela ficou branca e me fez jurar que eu não contaria nada a você. Claro que eu jurei com os dedos cruzados, né? Mas perguntei a ela o motivo de não poder contar a você, já que você ficaria orgulhosa dela, então ela me disse que achava que se você soubesse disso, nunca mais leria com ela. Eu sugeri então que ela fizesse uma surpresa para você e algum dia dissesse que ela é quem leria para você antes de você dormir. Fiz bem?
- Isso seria... IN-CRÍ-VEL, como diria a Bia. Puxa, minha filhinha está crescendo mais rápido do que eu imaginava!
- Sim. E sobre a briga na escola... a professora disse que, no intervalo, um menino valentão começou a caçoar de um aluno novo e a turma toda começou a rir. A Bia ficou revoltada com isso e se levantou para defender o novo colega antes que a professora pudesse interferir. O valentão não gostou de ser humilhado por uma garotinha e a empurrou no chão. Não sei o que foi que a Bia disse para ele, mas parece que a turma parou de rir do menino novo e começou a caçoar do valentão.
- Miguel. Esse é o nome do valentão. A Bia já teve outros desentendimentos com ele. A professora disse que ele vem de uma família problemática e tem mesmo um temperamento difícil. Mas ele nunca havia partido para agressão física antes. É, parece mesmo que eu vou ter que ir à escola resolver isso. Não quero deixar a Bia de castigo por defender um amigo, mas também não posso deixar isso passar em branco. Ela não pode ficar provocando colegas mais fortes desse jeito!
- Ana, não é culpa dela! Ela só fez o que achou certo. Ela nem tentou revidar, só disse para o tal de Miguel que era por isso que ele não tinha amigos. No mínimo ela o fez pensar sobre o assunto, não acha?
- É uma turma de crianças de 6 anos! Por mais espertos que eles pareçam, ainda são crianças! Se não houver um adulto que os ensinem a diferenciar o certo do errado, eles vão aprender tudo errado. Está bem, não vou deixá-la de castigo, mas da conversa à noite ela não escapa!
- Está bem... mas não esqueça de verificar na escola quais as providências que eles estão tomando sobre o caso, afinal, sua filha foi agredida e isso é injustificável em qualquer situação!
- Só espero que o ano acabe logo, assim vou colocar a Beatriz em uma escola diferente ano que vem e quem sabe nos livramos do valentão.
- Desculpe, Ana, mas como ex-professora eu lhe digo que isso não vai adiantar. Existem garotos como esse Miguel em todos os lugares. O que você precisa é ensinar a Bia a se defender eles. Não estou dizendo que ela deve bater neles, não, violência de jeito nenhum, mas apenas se defender, física e mentalmente, de qualquer tipo de bullying e injustiça. Ela já tem esse senso de justiça muito forte dentro dela, só precisa aprender a controlá-lo melhor. Sua filha é uma garotinha IN-CRÍ-VEL!
- Sim, ela é. Obrigada por tudo mais uma vez, dona Rute. Não sei o que seria de mim sem você!
- O prazer é meu! Agora vou deixá-la descansar, essas olheiras não combinam com seus olhos verdes, querida! Tente não ficar acordada até tão tarde, está bem?
- Eu ainda preciso lavar a roupa e...
- Deixe isso para o fim de semana! Eu lhe ajudo, se quiser! Mas agora já para a cama!
- Obrigada mais uma vez...
- Se eu ganhasse 1 real por cada vez que você me agradece, eu já estaria milionária! Já lhe disse que faço isso com prazer. Boa noite, Ana!
- Boa noite, dona Rute!