sexta-feira, 7 de novembro de 2014

As cartas do fim do mundo - VI

Lugar perdido no fim do mundo, primeiro dia da primavera.

Aqui neste lugar esquecido pelo tempo, eu aprendi algumas das lições mais importantes da minha vida. A primeira é de que às vezes o silêncio fala mais que qualquer palavra. A segunda é que tem certas coisas que ninguém no mundo pode decidir por nós.

Sim, eu poderia ter lhe dado um milhão de conselhos, mas a pergunta é: você iria ouvir? Aos olhos do mundo você é o cara que tinha tudo e eu era o louco que tinha abandonado esse tudo. Nem um milhão de palavras seriam suficientes para convencê-lo de que existem outras possibilidades. Felizmente, há muitas maneiras de se dizer algo a alguém sem precisar das palavras. Eu descobri isso nas minhas andanças pelo mundo. Cada país tem sua língua, mas o sorriso é universal.

Quando eu cheguei aqui, nas minhas primeiras semanas, eu fiquei completamente abismado com a educação que eles dão aos filhos. Ela é totalmente diferente de tudo que eu já tinha visto antes! Aqui, quando uma criança faz algo errado, ela não é “castigada”. Ao contrário, ela recebe um presente! É claro que eu não entendi nada e achava tudo isso um absurdo, mas depois de algum tempo eu finalmente compreendi a lógica deles. Para eles, nós não somos como os animais, então não devemos ser educados através de punição, como fazem os adestradores de bichos. Nós somos seres inteligentes, logo, devemos usar essa inteligência para aprender. O ser humano é curioso por natureza e tudo que parece fora do lugar desperta estranheza. Quando um pai dá a um filho um objeto como “corretivo” para sua atitude, o que ele espera é que o filho descubra por si mesmo o porquê daquele “presente”. Imagine que você deu uma festa daquelas na sua casa e que seus convidados bêbados acabaram derrubando várias latinhas de cerveja na casa do seu vizinho. É claro que se seu vizinho viesse gritar com você, chamando-o de coisas de baixo escalão, vocês iriam acabar numa briga daquelas, certo? Mas o que você faria se ao invés disso ele simplesmente colocasse todas as latinhas em um saco e o jogasse de volta no seu quintal? Você iria reclamar? Ou morreria de vergonha e iria pensar duas vezes antes de deixar que os convidados da sua próxima festa voltassem a dar esse vexame? É mais ou menos isso que as pessoas daqui fazem. Elas não impõem castigos, elas deixam com que a própria consciência das crianças se encarregue de mostrar o caminho do certo e do errado. É um foco totalmente diferente.

Com tudo isso, acho que agora você pode perceber que mesmo sem dizer uma só palavra, eu lhe contei mais sobre o lugar onde eu moro e o que eu aprendi nestes últimos dez anos do que você poderia imaginar, não é? Mas você está certo em pelo menos uma coisa: sim, todos os presentes tinham um propósito. Não sei se serviram para o que eu tinha em mente, mas eu sei que no geral eles alcançaram seu objetivo, visto que agora você consegue ver a vida por outro ângulo.

Quando você me enviou aquela primeira carta, a primeira coisa que eu pensei foi: mas por que ele está olhando tanto para o todo se no fundo são os detalhes que fazem toda a diferença? Minha impressão era a de que você estava virando megalomaníaco! Tudo na sua carta era o maior, o melhor, o mais bonito... Como se você estivesse mais preocupado em ter do que em ser! Então lhe mandei a lupa para você poder ver as coisas mais de perto; a semente, para você entender que as coisas mais bonitas não podem ser compradas; a pipa para você se libertar da prisão das paredes; os bloquinhos de plástico para você usar a imaginação; e o porta-retratos para você guardar o que realmente importa: os bons momentos que nenhum dinheiro, status ou fama pode comprar.

E o que eu lhe recomendo de agora em diante? Não preciso lhe dar mais conselho algum. Você já conhece o caminho, só cabe a você decidir agora como percorrê-lo. Como dizem os nativos aqui: Boa vida!

Abraços!
Pedro

As cartas do fim do mundo - V

Sampa, um belo dia de sol!

Putz, uma lupa, um punhado de sementes, uma pipa, bloquinhos de plástico e agora... um porta-retrato??? E sem foto nenhuma? Pô, poderia ter pelo menos mandado uma foto desse lugar aí no fim do mundo onde você mora, estou curioso para saber como é, cara!

Bom, já que você não anda falando muito (para não dizer que não anda falando nada), eu resolvi imitá-lo! Junto com esta carta, estou lhe mandando as fotos que tirei nos últimos meses desde que a gente voltou a se corresponder: o formigueiro no meu quintal, as flores no jardim, os pacientes brincando no hospital e a pipa lindona voando no céu azul do parque. E no porta-retrato vou deixar aquela última foto da nossa turma reunida 10 anos atrás. Só agora quando fui colocá-la lá é que eu lembrei que no verso dela está escrito: “E que esse nosso sorriso se repita por todos os dias de nossas vidas!” Engraçado é que eu não me lembro de quem a escreveu. Será que foi uma das meninas? Nunca mais as vi. Tem notícias de alguém? Estava pensando que a gente poderia se reunir outra vez quando você vier passar as férias aqui, o que você acha? Estou curioso para saber que fim cada um levou.

Sabe, esses dias fiquei pensando em porque você me mandou todas essas coisas sem dizer uma palavra sequer. E o mais engraçado é que essas coisas aparentemente tão simples mudaram radicalmente minha perspectiva de vida! Eu meio que deixei as parafernálias modernas de lado para ficar brincando no quintal, troquei o carro pela bike, minha ex siliconada por um bom papo e agora me preocupo mais em me divertir no trabalho do que ganhar rios de dinheiro no fim do mês. Não sei ainda qual vai ser o próximo passo, mas estou até pensando em fazer curso de culinária, que tal? Haha! Eu lembro que quando você me disse que iria largar a boa vida que você tinha aqui para ajudar pessoas que você nem conhecia do outro lado do mundo eu o tachei de louco! Mas agora estou vendo que talvez o louco tenha sido eu, que passei a vida toda fazendo exatamente tudo o que a sociedade esperava de mim e me esqueci de viver meus próprios sonhos. Se a história da minha vida tivesse terminado há alguns meses, todo mundo provavelmente diria que ela teve um final feliz: bom emprego, casa, carro, namorada bonitona... Mas sabe qual é o problema dos finais felizes? É que eles congelam a vida! Simplesmente não há mais nada depois deles! Nada além do marasmo, do tédio, da mesmice! E quer saber? Eu não quero mais reticências para minha história, quero é muitos pontos de exclamação!!! De agora em diante, em todos os dias da minha agenda, vai estar escrito: “Compromisso de hoje: viver como se hoje fosse minha última oportunidade de fazer o meu melhor!”.

Cara, só quero lhe dizer uma coisa: MUITO OBRIGADO!

Abraços!
Maurício

As cartas do fim do mundo - IV

Sampa, algum dia do começo de algum ano.

Hey, cara, faz tanto tempo assim que você saiu do Brasil que nem se lembra mais das datas comemorativas? Dia das crianças já passou faz tempo, heim? Não entendi essa de você me mandar uma pipa. (Pipa, cara? Ela é linda, mas eu poderia ter comprado uma aqui, ia dar bem menos trabalho, não?) E... o que é isto mesmo? Esse conjunto de bloquinhos de montar. Já estou velhinho demais para brincar dessas coisas, não? E nem tenho filhos, não entendi mesmo...

Mas... como você sempre foi o entendido sobre tudo da turma, lá fui eu testar os presentes. Algo me diz que no fundo, no fundo (sabe-se lá onde) você deve ter uma explicação plausível para toda essa coisa esdrúxula! Eu confesso que adorei os bloquinhos! Montei e desmontei várias coisas e fiquei tirando fotos de tudo! Parecia criança mesmo! Teve um dia que eu até levei os bloquinhos para o hospital e fiquei brincando com o pessoal da pediatria, aí alguém teve a brilhante ideia de chamar os pacientes na fila de espera para vir brincar também! Cara, foi o dia mais divertido da minha vida no trabalho! Eu achei que só as crianças iriam gostar, mas, que nada, tinha até senhor idoso disputando os bloquinhos! Haha! Acabei tendo que deixar o brinquedo lá, não tive coragem de trazê-lo de volta e estragar a brincadeira do pessoal. E o melhor de tudo é que todos os médicos resolveram fazer uma vaquinha e comprar mais bloquinhos! Agora parece até que tem menos gente reclamando sobre a fila! Até o diretor do hospital veio elogiar nossa iniciativa. (Mal sabe ele que na verdade era tudo brincadeira!) Parece que o trabalho está até mais divertido agora! E tudo isso por causa de meros bloquinhos de plástico! Quem diria, heim?

Agora a pipa... ok, eu admito que demorei a criar coragem para empiná-la. Sei lá, parece meio coisa de gente vagabunda empinar pipa depois de uma certa idade... Mas um belo dia lá fui eu para o parque tentar entender porque raios você me mandaria uma pipa aí do outro lado do mundo. Senti-me meio ridículo no começo, mas depois que ela estava lá em cima, linda, eu simplesmente esqueci-me de tudo. Nossa, como foi bom! Pipa tem gosto de infância, do tempo que a gente ficava disputando quem conseguia cortar a linha do outro, lembra? Cara, bateu saudades! E pensar que eu nem lembrava mais o que era sentir o vento na cara! Muito bom!

Quanto à dona do restaurante... bom, descobri que ela tem namorado. Um belo balde de água fria nas minhas intenções, mas também, o que eu queria? Uma mulher com um bom papo e que cozinha tão bem, é lógico que ela não poderia estar assim dando sopa, né? Mas, ganhei uma amiga. Já estou no lucro!

É isso, por enquanto. Será que algum dia vou ler alguma coisa que você escreveu? Estou ficando preocupado, heim? Se continuar assim nas minhas próximas férias eu compro uma passagem e vou aí te resgatar no fim do mundo! Haha!

Abração!
Maurício

PS- Lindas flores, heim? Nunca tinha visto nenhuma parecida aqui no Brasil. Será que elas têm nome? Dão um trabalho do cão para cuidar, mas valem cada minuto! Só elogios de todas as visitas aqui em casa! Valeu mesmo!

As cartas do fim do mundo - III

Sampa, um mês depois da lupa doida!

HAHAHA! Cara, você só pode estar bem louco! O que você anda bebendo aí nesse lugar perdido que você chama de lar, heim? Agora, além da lupa, você me manda um punhado de sementes? E nem para mandar as instruções junto? Ah, fala sério! Eu sou MÉDICO, entendo de gente, não de planta! A lupa é para eu olhar as plantinhas então? Eu juro que não entendo...

Mas, ok, eu plantei as sementinhas. Fiquei duas semanas olhando para terra e nada! Ô coisinha mais demorada, heim? Estava até achando que tinha feito tudo errado, fiquei preocupado se tinha colocado água demais, ou se tinha deixado no sol de menos... Mas eis que finalmente o primeiro brotinho apareceu! Uhuuuu! Ainda não tem como saber que raios de planta isso vai ser, mas vou tentar cuidar dela direitinho. Mas só porque você me deixou curioso com esse mistério todo! Se fosse só para deixar a casa mais alegre, não seria mais fácil ir a uma floricultura e comprar meia dúzia de vasinhos? Bom, enfim, espero que um dia você se digne a me dar alguma explicação...

Mas, mudando de assunto, comprei uma bicicleta. Engraçado isso, não? Estou com um carro novinho na garagem, mas esses dias estou achando mais prático ir trabalhar de bike! Assim não pego trânsito e ainda descubro lugares que nem sabia que existiam! Aqui perto de casa mesmo descobri um restaurantezinho que nem lhe conto! Nossa, que comida mais deliciosa! E olha que eu passava lá em frente todo dia de carro e nunca tinha notado! Só quando eu passei de bike que aquele aroma maravilhoso chegou ao meu olfato e eu não resisti, tive que entrar para conhecer! E o melhor de tudo é que além da comida caseira ser perfeita, ainda conheci a dona do lugar. E que mulher! Não é assim do tipo gostosona que nem a minha ex, mas, nossa, daria para passar horas e horas papeando com ela sem enjoar nunca! Sério! Ela tem assunto para tudo! Sempre que meus plantões permitem, eu dou um jeito de ir almoçar lá, só para papear com a dona!

Bom, já lhe contei bastante sobre mim, heim? E você nem para dar notícias! O que foi, não sabe mais escrever não? Mas agradeço os presentes, ainda que eu não tenha a menor ideia do motivo de ter me enviado essas coisas... Depois que eu descobrir que raios de sementes são essas, eu lhe escrevo de novo contando da plantinha, beleza?

Abraço, cara!
Maurício

As cartas do fim do mundo - II

Sampa, um dia chuvoso de um ano qualquer.

Cara, fala sério! Foi pegadinha aquilo, não? Desde quando você é engraçadinho assim? Esse sol de rachar aí na sua cabeça está lhe fazendo mal, só pode! Eu lhe mando uma puta carta contando tudo sobre a minha vida e você me manda uma caixa com... uma lupa??? Que foi isso afinal? E eu achando que o louco sou eu...

Mas, bom, até que a lupa serviu para alguma coisa. Eu tava tão entediado outro dia que peguei a lupa e fiquei a tarde toda olhando o formigueiro aqui no jardim de casa. Nossa, nunca achei que observar formigas seria algo tão interessante! Você sabia que se passar o dedo no caminho das formigas elas ficam momentaneamente perdidas, sem saber para onde ir? Pesquisei sobre isso depois. Elas seguem umas às outras pelo “cheiro”, não pela visão. Já pensou se a gente também fosse assim? Se quando a gente fosse caçar mulher na balada a gente não usasse a visão? Iria ser bem engraçado acordar com uns tribufus ao lado!

E por falar em mulher... Minha namorada me deu um pé na bunda. Ela disse que eu estou esquisito demais, que ando me interessando mais por formigas do que por ela e me trocou, nada mais, nada menos, do que pelo chefe dela! Ah, fala sério... Mas isso é o que dá eu ficar por aí desfilando com uma Barbie do meu lado, lógico que mais dia, menos dia, ela iria acabar me trocando pelo Ken. Mas não tem nada não, logo, logo eu arranjo outra e estará tudo certo.

Mas, cara, você nem me disse nada sobre você afinal, só me mandou aquela lupa doida e mais nada! Estou até imaginando qual vai ser a próxima coisa que você vai me mandar. Você sempre foi um cara cheio de surpresas mesmo! Fica na paz aí e manda notícias suas na próxima vez!

Abração!
Maurício

As cartas do fim do mundo - I

Sampa, algum dia de um ano qualquer.

Cara, sei que faz muito tempo que a gente não se fala, mas bateu uma enorme saudade de você esses dias. Você sabe que mesmo aí do outro lado do mundo você sempre vai ser o cara que eu mais respeito na vida. Ultimamente tenho pensado para caramba naquela nossa última semana juntos, dez anos atrás. Como o tempo passa, não? Cada um tomou seu rumo, eu virei médico e você, quem diria, virou voluntário da ONU! Quem poderia imaginar uma coisa dessas, não?

Mas você deve estar se perguntando por que resolvi escrever uma carta depois de tanto tempo (e justo uma carta, nestes tempos modernos de e-mail e celular!). Pode parecer meio brega, mas é que faz tanto tempo que não recebo nada pelo correio que não seja conta para pagar que fiquei pensando que talvez uma carta de resposta de um amigo fosse me deixar feliz!

É, meu caro, a vida aqui não anda nada fácil... Eu sempre achei que quando tivesse um emprego que pagasse bem, um carro do ano e uma namorada gostosa eu seria o cara mais feliz do mundo, mas acho que se esqueceram de me contar alguma coisa. Sério mesmo! Todo mundo no hospital diz que eu sou um bom médico, faço meu trabalho direito e nunca houve uma reclamação sequer a meu respeito. (Bom, também nunca houve um elogio, mas isso não deve ser um mau sinal, eu acho!) Grana também é outra coisa da qual não posso reclamar: troquei meu carro este ano, estou terminando de pagar minha casa e mesmo assim sempre sobra o suficiente para cair nas baladas nos fins-de-semana. Minha namorada é uma gata, os caras todos morrem de inveja quando saio com ela por aí e o melhor é que ela é completamente apaixonada por mim! Então eu pergunto: mas que raios tem de errado comigo afinal?

Você deve estar me achando louco. EU estou me achando louco. Outro dia me peguei vendo as fotos da nossa turma e, você não vai acreditar, eu quase chorei! Sei lá o que acontece... Minha namorada acha que é só uma fase, que vai passar, mas sei lá, não está passando, pelo contrário, acho que está é piorando cada vez mais. Minha mãe, como sempre, acha que eu tenho que procurar uma psicóloga. Mania essa de achar que tudo se cura com psicologia! Eu não quero ficar 2 horas olhando para cara de uma mulher que eu nunca vi na vida e ficar respondendo coisas sobre a minha infância que não vão resolver coisa alguma dos meus problemas atuais!

Mas, bom, chega de falar sobre mim. Manda notícias sobre você, sobre esse lugar no fim do mundo que você chama de lar!

Abração, cara!
Maurício.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Diário insano - final alternativo

Um dia qualquer
Roberto sobreviveu à cirurgia, mas perdeu uma parte de sua memória. Quando acordou e me viu no hospital, nem mesmo me reconheceu. Talvez tenha sido melhor assim. Ele pensou que eu o tinha deixado por achar que seria mais feliz sem ele, mas agora percebo que era o contrário. Ele certamente ficará melhor sem lembranças da dor que causei a ele, mesmo que isso custe todos os bons momentos que também tivemos. Desde que ele acordou, tenho me perguntado se Deus me ouviu ou ignorou minha prece. Para ser bem sincera, tenho tido dúvidas se Ele realmente existe ou se é só um anestésico para nos livrar da culpa que sentimos por termos pena de nós mesmo.

Pedi demissão do hospital, devolvi a chave de casa e deixei Lupy na casa do Ronaldo por uns tempos. Larguei a terapia. Cheguei à conclusão de que sou a única pessoa capaz de me ajudar. Para merecer a felicidade, tenho que primeiro aprender a gostar de mim. Preciso de respostas e sei que só posso encontrá-las no lugar de onde fugi toda a minha vida: em mim mesma.

Aluguei um carro e estou dirigindo sem rumo. Mas dessa vez não estou fugindo. Estou apreciando a paisagem. Não sei aonde esta estrada vai me levar, mas pelo menos dessa vez sou eu quem está guiando minha vida, não meu passado, não meus medos, mas minha coragem de mudar. Pode ser que o fim da estrada seja um abismo, pode ser que seja uma bela praia, mas seja o que for, eu sei o que estará me aguardando lá.

Diário insano

Segunda-feira.
Chego em casa depois de um dia cansativo. Esse silêncio, essa solidão, ao mesmo tempo me acalmam e me angustiam. Me jogo no sofá e penso em como minha vida está se passando sem mim. Hoje, no hospital, operei um homem envolvido em um assalto à mão armada. É revoltante saber que, por juramento, sou obrigada a salvar a vida de pessoas que não merecem viver. Pior ainda é saber que pessoas inocentes são feridas por gente covarde, que não pensa duas vezes em usar a força bruta para conseguir o que quer. Me pergunto por que ainda existem pessoas que aceitam isso como algo que não se pode mudar. Olho o retrato na parede. Minha mãe. Me lembro como se fosse hoje: ela sendo espancada por meu pai alcoólatra e chorando para que eu saísse dali para não correr o risco de apanhar também. Minha vontade era fazer alguma coisa para ajudá-la, mas o que uma criança de 6 anos podia fazer contra um covarde com o dobro do tamanho dela? Nunca entendi porque minha mãe demorou tanto para deixá-lo. Não sei dizer se era por medo, por falta de amor próprio, ou porque talvez ela imaginasse que sem ele as coisas seriam ainda piores para nós duas. Uma mulher e uma criança abandonadas à própria sorte, sem casa, sem comida, sem nada. Ás vezes me pergunto se ela o aguentou por tanto tempo, sacrificando a própria felicidade, por mim, para me proteger. Outras vezes penso que qualquer outra atitude mais corajosa, por mais difícil que fosse, talvez pudesse ter tornado tudo completamente diferente, talvez até menos doloroso.

Terça-feira
Dia de terapia. Já faz algum tempo que percebi que precisava de ajuda profissional. Essa angústia sufocante não pode ser apenas stress por causa do trabalho. Tenho pensando bastante sobre o sentido da vida, sobre a morte, sobre relações humanas completamente desgastadas. Minha terapeuta acredita que quando estamos próximos da morte sempre pensamos em coisas como Deus, família e arrependimentos. Não tenho certeza de que uma pessoa possa mesmo pensar em tudo isso em tão pouco tempo. Ainda mais porque esses são assuntos sobre os quais eu penso todos os dias de minha vida e que nunca consegui entender completamente. Vejo a morte de perto todos os dias em meu trabalho. Sinto que para alguns ela é terrivelmente dolorosa, mas para outros ela é um grande alívio. Se pudesse escolher, gostaria que para mim ela fosse calorosa, com aquela sensação de dever cumprido que não tenho conseguido encontrar ultimamente.

Quarta-feira
Quando eu era pequena, minha mãe costumava me levar à igreja para conversar com os anjos. Isso foi muito antes de meu pai se tornar um alcoólatra. Naquela época eu ainda acreditava que o mundo era um lugar perfeito e que todas as pessoas eram felizes. Deus era um homem bom e cuidava com carinho de todos os seus filhos.

Hoje, voltando do hospital, vi o pastor da igreja que eu costuma frequentar cercado de prostitutas. E não, ele não estava abençoando nenhuma delas, nem ouvindo suas confissões. Para ser sincera, creio até mesmo que ele estava, na verdade, ajudando-as a cometer ainda mais pecados.

Cada dia que se passa, tenho mais convicção de que o inferno é aqui.

Quinta-feira
Outro dia daqueles. Tentei conseguir um empréstimo no banco para abrir minha própria clínica. O gerente me disse que não podia aprovar meu crédito, pois só pode fazer esse tipo de transação com clientes com conta há mais de 10 anos. Creio que vou ter que esperar mais 3 longos anos para conseguir sair daquele hospital público deprimente e conseguir trabalhar com algo que me dê algum prazer emocional. Me pergunto se minha sanidade aguentará tanto tempo.

Sexta-feira
Finalmente meu dia de folga. Me permito acordar mais tarde, tomar um banho demorado e brincar um pouco com o Lupy. Acho que ele sente minha falta quando estou de plantão, mas ainda assim é o melhor companheiro que se pode ter. Parece ser o único que fica realmente feliz em me ver, não importa o estado lamentável em que eu me encontre. Por que os homens não podem aprender com os animais? O mundo seria tão menos complicado...

Ligo a TV. Político investigado por fraude. Terremoto deixa milhares de pessoas desabrigadas. Homem-bomba mata 15 pessoas. Policial esfaqueia mulher por ciúmes.

Desligo a TV. É meu dia de folga, não quero passar meu tempo livre pensando em desgraças. Acho que vou ao orfanato visitar as criancinhas. Queria poder adotar uma, mas com essa vida corrida acho que não seria justo com ela ter uma mãe que passa mais tempo no trabalho do que com ela. De qualquer forma, vou lá levar e receber um pouco de carinho. Quem sabe esse pouco que tenho a oferecer seja justamente a diferença que vai tornar essas crianças pessoas mais capazes de acreditar na felicidade.

À noite, recebo uma ligação. É o Ronaldo, um dos poucos amigos de verdade que tenho. Ele diz que ando ausente, que está com saudades e que quer conversar. Saímos para dar uma volta, mas a verdade é que não ando muito inspirada para conversas banais. Ele percebe isso, se cala e me abraça. Me olha com aquela cara de "qual é o problema?" e eu nem sequer consigo olhar de volta. Devo estar realmente muito mal. Ele é meu melhor amigo e mesmo ao lado dele me sinto só.

Sábado
Dia tranquilo no hospital. Definitivamente muito fora do normal para um fim-de-semana, mas é claro que não estou reclamando disso. Aproveito para fazer algumas pesquisas na internet. Assim que cheguei aqui, fiquei sabendo do caso de uma menina que se suicidou por causa de uma briga com o namorado. Esse é um assunto que me intriga bastante: amores e suicídios. Um poema na internet indaga se o suicido não é uma forma corajosa de se chegar mais rápido a um lugar melhor. Me pergunto se esse escritor também estava decepcionado com o mundo ao seu redor. Me sinto tão só, mas alguma coisa dentro de mim me impede de procurar relacionamentos mais sérios. Não que eu não queira um amor de verdade, tenho certeza de que quero, mas me tem sido tão difícil acreditar nas pessoas. Toda vez que algum dos meus namoros começa a ficar mais sério eu entro em pânico e termino o relacionamento. Fico pensando em meus pais. Em quanto eles eram (ou pareciam) felizes antes daquele maldito acidente mudar tudo. Meu pai perdeu o movimento da mão direita no acidente de carro. Perdeu muito mais que isso. Perdeu seu emprego, sua dignidade, seu amor-próprio. Arruinou a vida da minha mãe e quase acabou com a minha. E tudo por causa de um maldito adolescente drogado dirigindo na contramão! Pensei que me tornando médica eu seria capaz de ajudar pessoas como meu pai a recuperar seus movimentos e sua autoestima, mas ao invés disso estou aqui nesse hospital maldito cuidando justamente de drogados, bandidos e todo esse tipo de gente que merecia morrer. Tenho medo de me decepcionar com as pessoas como me decepcionei com meu pai. Tenho medo de não ter coragem de mudar, como minha mãe não teve. Quero mais do que esse mundo tão pequeno em que vivo agora.

Domingo
Surtei. Sim, entrei em pânico total quando vi Roberto ali sangrando na maca do hospital. Meu último namorado. O melhor de todos. O mais carinhoso, o mais compreensível, o melhor companheiro que se pode ter. Mas é claro que eu tinha que ir lá e estragar tudo. O ouvi conversando baixinho com uma amiga, dizendo que estava pensando em me pedir em casamento. É claro que gelei de medo e terminei tudo assim, sem mais nem menos, sem ao menos lhe dar uma explicação. Ele ainda foi bem paciente e tentou conversar comigo, me fazer mudar, voltar atrás, mas a simples ideia de me tornar emocionalmente dependente de alguém para o resto da minha vida me deixou completamente apavorada. Disse que podíamos ser amigos. Ele respondeu que me amava demais para ser apenas um amigo, mas que se eu tinha tomado essa decisão era porque no fundo eu provavelmente seria mais feliz sem ele. E foi assim, me desejando felicidade, que ele partiu, com lágrimas nos olhos, sem dizer mais nada. Nunca mais nos vimos. Isso foi há 3 meses.

Agora eu estava ali, diante dele novamente, com sua vida em minhas mãos, me perguntando que raios eu estava fazendo comigo mesma todo aquele tempo. O enfermeiro disse que Roberto tinha sofrido um acidente de moto quando voltava da Praia Rosa. A Praia Rosa. Nosso lugar especial. O lugar do nosso primeiro beijo. Tudo isso veio à tona de uma vez só em minha cabeça naquele momento. Minhas mãos tremiam. Eu precisava fazer uma operação de emergência extremamente complicada, mas não conseguia parar de chorar. Respirei fundo. Enxuguei as lágrimas. Rezei novamente pela primeira vez nos últimos 20 anos. Prometi a Deus que se Roberto saísse vivo daquela mesa de operação eu pararia de sentir pena de mim mesma e me permitiria ser feliz. Mesmo que isso fosse uma tarefa quase impossível. Mesmo que para isso eu precisasse aprender a confiar mais nas pessoas e a acreditar mais em mim mesma. Eu sabia que podia conseguir. Eu TINHA que conseguir.

.............

Terça-feira
Roberto finalmente acordou do coma induzido. Ele passa bem. Ainda não sabe que fui eu quem o operou, mas estou feliz em vê-lo bem.
Minha terapeuta ficou feliz com as decisões que tomei. Vou sair do hospital. Decidi que quero trabalhar com gente que mereça ser tratada. Liguei para o Ronaldo ontem à noite e ele ficou empolgadíssimo com a idéia de criarmos uma ONG para tratar de crianças em situação de risco. Não vou mais fazer terapia, mas vou continuar vendo minha terapeuta todos os dias: ela também vai trabalhar conosco. E por algum motivo que desconheço, até o gerente do banco resolveu colaborar: disse que o banco oferece crédito especial para programas sociais, como forma de criar empatia entre a empresa e a sociedade. Essa semana mesmo começaremos a trabalhar no projeto. Acho que nunca estive tão bem em toda minha vida. Parar de reclamar e fazer acontecer. Essa é a maneira de certa de ser feliz. Quando vamos em busca do que queremos, o universo inteiro conspira a nosso favor.

E se...

Estava um sol escaldante e os escravos construíam uma nova pirâmide para o faraó recém escolhido pelos deuses. Era um trabalho sufocante e muitos se perguntavam quando os bons deuses trariam a abençoada chuva outra vez.

O novo faraó havia exigido que as paredes de sua futura tumba fossem decoradas com todos os deuses para que ele tivesse todo o tipo de proteção no caminho para o outro mundo. Pinturas detalhadas e diversas esculturas foram colocadas nas câmaras principais da construção, onde apenas era possível chegar depois de passar por um intricado e traiçoeiro labirinto.

No palácio real, os sacerdotes estavam agitados: logo chegaria a época da Festa de Opet, realizada todos os anos para o rejuvenescimento do Faraó e dos deuses e comemorada, tradicionalmente, na época da cheia do Nilo. Esse ano, porém, as chuvas estavam demorando a chegar, o que era considerado por muitos como um mau presságio.

O faraó estava em seus aposentos, ouvindo o lamento de sua corte, sem se abalar com tempo lá fora. Ele era um deus, afinal, por que deveria se preocupar? Tinha pouco mais de 12 anos e um reino inteiro aos seus pés, mas estava visivelmente entediado. Ser um deus deveria ser divertido, mas passar seus dias ouvindo preces e reclamações não era bem a sua idéia de diversão. Levantou-se e caminhou até a janela sem dizer uma palavra, deixando todos de sua corte perplexos e sem saber o que fazer. "Tantos deuses a nosso dispor e nenhum que seja capaz de me livrar deste tédio... que desperdício!", pensou. Nesse mesmo instante, um raio cortou o céu ao longe e o barulho de seu trovão atravessou a sala logo depois. Os sacerdotes ajoelharam-se no mesmo instante para agradecer aos deuses pela chuva que viria, mas o faraó apenas olhou intrigado pela janela: havia algo de muito estranho acontecendo em suas terras.

Chamou o comandante de seu exército e ordenou que sua guarda de elite fosse até o local atingido pelo raio e avisou que ele próprio iria com eles. Houve um burburinho na sala e ninguém entendeu o que se passava. "Pode não ser nada além de minha imaginação, mas pelo menos me livrarei por alguns instantes desse bando de lamentadores!", pensou.

Ao chegarem próximo do local onde o suposto raio deveria ter caído, todos, incluindo o faraó, deixaram-se cair boquiabertos: não havia ali nenhuma árvore partida, nenhuma pedra chamuscada, nem sequer uma única grama queimada. Havia, sim, uma enorme esfera cintilante pairando no ar, circundada por raios azuis tremulantes.

O sacerdote do faraó, que o acompanhava em todas as suas saídas do palácio, começou imediatamente a fazer todas as preces de que se lembrava. O faraó, no entanto, apenas levantou-se e caminhou até aquela misteriosa aparição e esticou a mão para tocá-la, no que foi de pronto impedido pelo comandante de seu exército. Se alguém tivesse que arriscar a vida para descobrir o que era aquilo, a última pessoa a fazer isso deveria ser o faraó.

No mesmo instante em que o comandante tocou a esfera, todos ali reunidos tiveram o vislumbre de um outro mundo, completamente diferente do local e da época em que viviam. Era um mundo extremamente colorido, ricamente povoado, com pirâmides de todas as formas e pessoas de todos os tipos. A visão não durou mais do que poucos segundos, mas foi o suficiente para fascinar o faraó e congelar de medo todas as outras pessoas que o acompanhavam.

Assim que o transe passageiro terminou, a esfera de luz havia sumido e no lugar dela estava nada menos que um deus! Um deus-camundongo, nunca antes mencionado na história do Egito. Todos, exceto o faraó, ajoelharam-se diante do novo deus porque não sabiam ao certo que tipo de deus era aquele.

O deus-camundongo olhou sem jeito para o faraó e fez uma saudação estranha, balançando a mão direita de um lado para o outro, com a palma estendida para frente. O faraó, sem saber o que fazer, devolveu o cumprimento engraçado. O deus-camundongo sorriu e começou a falar na língua dos deuses, mas o faraó, ainda que fosse ele próprio um deus também, não compreendeu nada.

O sacerdote, percebendo que não havia perigo iminente, levantou-se e tentou conversar com o novo deus, mas também não compreendeu uma palavra sequer do que dizia o ilustre visitante. Frustrado, o novo deus começou então a fazer um ritual mágico com sua estranha coroa preta. Todos olharam perplexos quando o deus-camundongo começou a tirar as mais variadas coisas de dentro de sua coroa: pombas, cartas, lenços e até mesmo um estranho animal pequeno e peludo com orelhas compridas. Quanto mais o novo deus demonstrava o seu poder, mais medo causava no exército do faraó.

O deus-camundongo estendeu o pequeno animal para o faraó e, assim que este o aninhou em seus braços, o animal se transformou em minúsculos raios coloridos que dançaram em torno de seu corpo. Todos que acompanhavam o faraó deram um passo para trás, assustados, mas o faraó, ao invés disso, começou a sorrir como a criança que ainda era e seu sorriso se transformou em riso e logo o faraó estava gargalhando como nunca alguém o havia visto.

Nesse mesmo instante, começou a chover.

O sacertode abriu seus braços e, olhando para o céu, começou a agradecer aos deuses pela benção da água.

O comandante do exército considerou que aquele deus-camundongo deveria ser o deus da chuva e o reverenciou.

O faraó, porém, foi o único que de fato entendeu o que aquele deus estava fazendo ali: ele era o deus da diversão. De que adiantava todas as terras, todas as jóias, todo o poder de um deus se não houvesse um pouco de diversão para tornar a vida e o além-vida mais prazeroso? Diversão era, de fato, o único poder capaz de trazer o equilíbrio de um reino de volta.

O deus-camundongo entregou uma chave com o formato de suas orelhas redondas ao faraó, fez outra reverência engraçada dobrando seu corpo para frente, sorriu e desapareceu diante de todos, como se nunca houvesse estado ali.

Nos dias que se seguiram, a paz retornou ao Egito, o Nilo finalmente encheu-se e os preparativos para a Festa de Opet começaram. Todos no reino pareciam trabalhar com mais alegria e o faraó ficou satisfeito com isso.

Como todos no palácio pareciam ocupados demais para notar sua ausência, o faraó dirigiu-se só até o local onde estava sendo construída sua futura tumba. Falou com encarregado pela obra e, dizem, há até hoje no Egito uma pequena pirâmide escondida que possui tobogãs no lugar de corredores e pinturas de um deus-camundongo em suas paredes. Alguns acreditam que nela esteja sepultado um faraó feliz, outros dizem que o faraó-menino apenas desapareceu ao abrir uma porta com sua chave de orelhinhas e foi para um além-vida diferente, um lugar colorido e divertido onde uma criança podia ser, afinal, apenas uma criança.

Contudo, essa história perdeu-se no tempo e apenas poucos a conhecem. A verdade, meus caros, é que o espírito do faraó-menino vive até hoje, mas sua pirâmide não está mais onde se supõe que ela deveria estar. No momento em que o faraó finalmente encontrou uma fechadura adequada para sua pequena chave, a magia do deus-camundongo fez-se novamente presente e levou o faraó e sua pirâmide para um passeio no espaço-tempo. Para onde e quando, somente sua imaginação, caro leitor, pode lhe dizer.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

2 colheres de felicidade - epílogo

O final feliz da história de Ana e Bia poderia terminar assim. Mas, como dizia o bilhetinho do biscoito de Ana, “coisas boas acontecem quando menos se espera”...

Um dia, pouco tempo depois da festa no orfanato, o senhor Isac, pai de Miguel, apareceu na doceria. Ele tinha propostas de negócios para fazer. Ana ouviu, mas agradeceu e recusou a oferta para vender os biscoitos da felicidade na rede de supermercados de Isac.

- Sinto muito, senhor Isac, mas eu não poderia fazer isso. Primeiramente porque a ideia não foi minha, muita gente se empenhou para tornar tudo isso realidade. E segundo, porque a ideia por trás dos biscoitos é a de deixar a vida das pessoas um pouquinho mais feliz e eu não vejo como isso seria possível se eles se tornassem um produto industrializado. Acho que o carinho com que a gente faz os biscoitos faz toda a diferença.
- Entendo, senhora Ana. No entanto, eu vi o sucesso que eles fizeram e finalmente descobri que foram a senhora e sua filha quem fizeram a festa de aniversário surpresa para o meu filho. Não se preocupe, não contei nada a ele. Mas ainda assim eu acho que tenho uma certa obrigação em ajudá-la. Pensei que vender os biscoitos na minha rede seria uma boa ideia, mas pelo visto me enganei novamente. Então, o que posso fazer por vocês?
- O senhor não precisa fazer absolutamente nada, senhor Isac! Nós ficamos muito felizes por termos conseguido ajudar o Miguel a se entender com o senhor outra vez.
- Sim, eu passo tanto tempo cuidando dos negócios que às vezes acabo negligenciando meu papel de pai. Neste ponto, devo dizer que a admiro muito, senhora Ana! A senhora parece estar fazendo um ótimo trabalho, tanto como empresária quanto como mãe!
- Empresária? Puxa, eu realmente nunca me vi assim. Era o Roberto quem cuidava da parte administrativa da doceria, eu mal sei o que estou fazendo!
- A senhora está com dificuldades com a burocracia, senhora Ana? Alguma coisa em que eu poderia ajudar? Talvez um empréstimo?
- Não, bom, não exatamente. É uma longa história...

Ana então contou a Isac sobre o inventário de Roberto e sobre as contas bloqueadas e sua preocupação com o 13º dos funcionários.

- Mas acho, acredito, que vai dar tudo certo. Já dei entrada para receber o seguro e a pensão, se tudo sair conforme o planejado, devo receber a tempo de pagar os funcionários.
- Senhora Ana, desculpe a indiscrição, mas acho que você não deveria misturar suas finanças pessoais com as finanças da empresa. Será que a venda dos novos biscoitos não seria o suficiente para pagar o 13º?
- Não tenho certeza, faz só algumas semanas que eles foram lançados e...
- Posso dar uma olhada no seu livro-caixa?

E assim Isac se tornou o mentor administrativo da doceria. Ele não cobrou nada pela ajuda, mas, com seus conselhos, Ana logo aprendeu a lidar com toda a papelada, sem a velha insegurança. O seguro e a pensão realmente saíram quando se esperava, mas Ana não precisou deles para pagar os funcionários. A doceria tinha chegado ao ápice bem mais cedo do que Ana e Roberto jamais poderiam ter sonhado. Logo o site começou a receber encomendas para bolos de aniversário e de casamento. Ana teve que contratar mais funcionários, mas agora isso não a apavorava tanto quanto antes. Gabi se formou com louvor e também foi chamada para fazer a reformulação visual da loja e de todas as embalagens. Ela e Pedro começaram a namorar e cuidam juntos do site e das redes sociais da doceria. Ana também promoveu Pedro ao cargo de gerente. Dona Rute finalmente fez as pazes com o filho. Este se separou da ex e agora namora a dona de uma livraria, onde Bia sempre compra livros novos. Os bilhetinhos dos biscoitos da felicidade nunca erram.

“Não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho.”
Mahatma Gandhi

2 colheres de felicidade - XI

A festa no orfanato foi inesquecível. Bia, Rafael e Bianca se enturmaram bem rápido com as outras crianças e brincaram como nunca. Dona Rute, senhor Antônio e Ana ficaram na cozinha, assando e fritando os salgadinhos e distribuindo pedaços de bolo e biscoitos. Gabi e Pedro passaram o dia lendo para as crianças, que saíam imitando os heróis dos livros assim que a história terminava, estreando seus brinquedos novos. Foi um dia agradável para todos. Os membros da gangue receberam tanto carinho das crianças que foi como se todo o trabalho que tinham planejado por semanas fosse um quase nada perto do que receberam em troca.

- Eu não sei quanto a vocês, mas eu com certeza quero adotar uma criança daqui a alguns anos!
- Olha, Gabi, eu confesso que nunca pensei em ter filhos, mas depois de hoje, estou até reconsiderando!
- Pedro, eu sei como você se sente. Depois de tudo o que aconteceu hoje, estou até com vontade de ligar para o traste do meu filho e fazer as pazes!
- Faça isso, dona Rute, faça isso! Hahaha!
- Mamãe, estou tendo outra ideia...
- Ah, não, outro segredo desses eu não aguento, Bia!
- Não, mamãe, eu só estava pensando se a gente poderia fazer tudo de novo no natal! Só que dessa vez, a gente pode pedir para as pessoas doarem roupas novas, que tal? Aí as crianças vão poder passar o ano novo bem bonitas! Acho que elas iam gostar!
- É, eu acho que é uma boa ideia, Bia! Pelo menos agora a gente já vai ter mais experiência nisso, acho que vai ser tudo mais fácil de planejar!
- É verdade, Pedro! E temos bastante tempo para isso ainda! Eu adoraria voltar aqui mais vezes!
- Nós também, menina Gabriela! O Rafael e a Bianca adoraram os amigos novos.
- Então, acho que estamos combinados! Nova festa para as crianças do orfanato no natal!
- Obaaaaaaaaa! Obrigada, mamãe! E você também poderia pensar em adotar um irmãozinho para mim, né? Eu ia gostar muito...
- Hahaha! Eu posso pensar no caso, Bia, mas não prometo nada, ok? Ainda tenho muitos problemas para resolver antes de tomar uma decisão tão importante assim.
- Que problemas, Ana? Sejam lá quais forem, estamos todos aqui para ajudar!
- Ééééé! A gangue dos super biscoitos vai mudar o mundo, mamãe!
- Hahaha! Gostei do nome! Mas não quero nem pensar nos problemas agora, hoje é dia de comemorar! Só tenho a agradecer por ter vocês ao meu lado, vocês são os melhores amigos do mundo!

“Querida vovó!

Eu estou feliz que o vovô já tenha ficado bom logo, mamãe disse que podemos passar o ano novo com vocês, mas no natal a gente vai ficar aqui para fazer outra festa no orfanato! Mal posso esperar!

Eu gostei muito do livro que vocês me mandaram junto com a outra carta! Já estou quase terminando de ler. Eu e o Beto lemos juntos todas as noites. Estou treinando com meu ursinho porque, quando eu tiver um irmãozinho, eu vou ler para ele dormir, que nem a mamãe fazia comigo.

Que bom que vocês gostaram dos biscoitos, o segredo deles é que eles têm muita felicidade na receita! E as frases? O que você e o vovô acharam delas? E o tio Carlos, vocês entregaram o pacotinho que eu mandei para ele? Os biscoitinhos da felicidade estão fazendo muito sucesso na doceria! Agora vem gente de todos os lugares para comer doces lá, a mamãe está muito feliz!

Agora eu preciso ir, a gente vai na doceria para decidir sobre a festa de natal. Manda um beijo para o vovô! Te amo, vovó!

Beijos!

Bia.”

2 colheres de felicidade - X

O resto da semana seguiu quase normalmente. Ana levou os documentos para o doutor Fabrício e este lhe garantiu que agora estava tudo ok, o inventário de Roberto ficaria pronto o mais rápido possível. A quantidade de bilhetinhos enviados e recebidos pelos membros da gangue da Bia também aumentou. E na sexta à noite, Ana finalmente teve a notícia que tanto aguardava:

- Ana, eu sei que sábado é o seu dia de folga, mas a gente estava querendo saber se teria como você e a Bia virem aqui amanhã, no fim do expediente.
- Isso tem alguma coisa a ver com o segredinho da gangue, Pedro?
- Sim, chegou a hora de contar a você do que se trata essa mega operação afinal!
- Ah, eu virei com certeza! Não aguento mais de tanta curiosidade!
- Você vai gostar, tenho certeza!

Ana tentou convencer Bia a lhe dar alguma dica do que aconteceria no dia seguinte, mas é claro que não conseguiu nenhuma informação, exceto de que agora dona Rute também fazia parte da gangue.

- Até ela? Mas quando foi que ela entrou para a gangue se eu não me lembro de ter dado nenhum dos seus bilhetinhos para a nossa vizinha?
- Porque não precisava, né, mamãe? Eu sempre encontro com a dona Rute no elevador, na portaria, em vários lugares. E eu já tinha falado com ela aquele dia que eu desci para jogar totó com o tio Carlos, ué!
- Então seu tio Carlos também sabe do segredo?
- Ele sabe mais ou menos, mas eu pedi para ele não contar nada para a vovó ainda. Eu quero eu mesma contar para ela quando tudo estiver pronto.
- Pensei que já estava, o Pedro disse que a gente precisa ir lá amanhã para vocês me contarem tudo!
- Não, mamãe, os planos estão prontos, mas ainda falta colocar em prática e você vai precisar ajudar a gente também. Porque a gente vai precisar pegar algumas coisas da doceria emprestadas...
- Emprestadas? Uhm...
- Ah, mamãe! Você já esperou tanto tempo, que custa esperar só mais um dia?
- Tudo bem, Bia, vou esperar. E já que você falou da vovó, acho que vou ligar para ela para saber se o vovô já está melhor.
- Eu posso falar com o vovô também?
- Se ele estiver bem, pode sim. Espera só um pouquinho. Alô? Cláudia? É a Ana! Tudo bem?
- Ana! Tudo bem sim! Algum problema com os documentos? Ainda falta alguma coisa?
- Não, já falei com o advogado, ele disse que está tudo certo agora, obrigada! Eu liguei para saber notícias do senhor Paulo. O médico já disse alguma coisa?
- Ah, ele vai precisar fazer uma operação, mas o médico disse que o tumor ainda é bem pequeno, então a chance de dar tudo certo é grande. Agora estamos correndo para fazer mais exames para marcar logo a data. Se tudo sair como planejado, até o natal o Paulo já deve ter tido alta do hospital e você e a Bia vão poder vir passar as festas aqui com a gente!
- Ah, eu e a Bia vamos ficar aqui torcendo por isso então! Mantenha-me informada e se precisarem de alguma coisa, me avise! Escute, a Bia queria falar oi para o avô, será que o senhor Paulo poderia falar com ela um minutinho?
- Sim, ele está aqui do meu lado! Mas eu posso falar com ela primeiro?
- Bia, é a vovó, ela quer falar com você antes de passar para o vovô.
- Oi, vovó! A dona Rute já consertou o nariz do ursinho e ela até fez uma roupinha nova para ele, ele está lindo!
- E você já deu um nome para ele?
- Acho que vou chamar o ursinho de Beto, igual ao apelido do papai!
- Seu pai iria ficar muito feliz, Bia! Mas eu queria falar com você para saber se você já mandou a cartinha para mim!
- Ainda não, vovó, mas vai demorar só mais alguns dias! Eu prometo que te conto tudo logo, logo!
- Está bem, vou esperar então! O vovô vai falar com você agora!
- Oi, minha netinha linda! Você queria falar com o vovô?
- Vovô, aquele dia você foi embora da minha casa muito rápido porque você estava doente, eu queria saber se você já sarou!
- Ainda não, Bia, mas eu acho que antes do natal eu já vou estar bom, aí você vai poder vir aqui me visitar!
- Ah, está bom, então! Vou ficar aqui torcendo para você sarar logo, vovô! E pede para a vovó te dar beijinhos para você sarar mais rápido!
- Hahaha! Está bem, vou falar para ela! Tchau, Bia! Manda um beijo para a mamãe também! E se comporte, heim?
- Eu sou muito comportada, vovô! Beijo!
- A senhora é muito comportada, é? Sei...
- Mamãe! Que feio, escutando a conversa dos outros!
- Hahaha! Foi sem querer, Bia, desculpa! O jantar está pronto, vamos comer?
- Vamos! Estou com muuuuita fome hoje!

E eis que o grande dia chegou finalmente. No sábado à tarde, assim que terminaram de fechar a doceria, todos se reuniram ao redor de uma mesa com várias caixas. Gabriela e dona Rute também estavam lá, Pedro estava com seu laptop e até Maria e Joana, as atendentes da doceria, ficaram para a reunião. O senhor Antônio chegou da cozinha com uma forma enorme de biscoitos.

- Bom, Ana, chegou a sua hora de entrar para a gangue! Bia, você quer contar para a sua mãe como isso tudo começou?
- Mamãe, você se lembra daquele bilhete que você me mostrou uma vez? Que a Gabi tinha escrito para você? Da receita da felicidade?
- Me lembro sim, claro, Bia!
- Eu gostei do que ela escreveu, aí quando eu vim com você aquele dia na doceria e vi o senhor Antônio fazendo biscoitos, eu tive uma ideia! A gente podia fazer biscoitinhos da felicidade! Tipo aqueles biscoitos da sorte chineses, só que mais legais!
- Quando eu conversei com a Bia aquele dia e ela descobriu que tinha sido eu que tinha escrito o bilhete, ela resolveu compartilhar o segredo comigo e perguntou se eu a ajudaria a escrever mais frases! Eu achei a ideia genial e, além das frases, também ajudei a criar as embalagens, são caixinhas que viram mini-presentes, podem ser brinquedos, jogos, porta-retratos, um monte de coisas, já fiz um planejamento de 12 caixinhas, uma para cada mês do ano!
- Nossa, Gabi, mas isso deve ter dado um trabalhão! Como você arranjou tempo para fazer tudo isso em plena época de TCC?
- Ah, foi uma ótima distração, na verdade! Você se lembra que eu disse que estava descontando minhas agonias nos doces? Então, agora eu tenho uma coisa mais saudável e útil para fazer: criar embalagens para o projeto da Bia!
- As caixas estão lindas, dona Ana! E a minha parte, claro, foi criar as receitas dos biscoitos. Mas o formato e os sabores foram a Bia quem escolheu!
- Os biscoitos ficaram muuuuito deliciosos, senhor Antônio! Eu queria que os biscoitos ficassem bonitos, mas que também tivessem um lugar para gente colocar as frases para deixar as pessoas felizes. Aí eu pensei naquele biscoito do desenho do ogro que a gente assistiu outro dia na TV, mamãe. Eu falei: a gente pode fazer um biscoito com uma carinha feliz e colocar um furinho na mão dele para gente por o bilhete! Como se ele estivesse entregando o papel para a pessoa, sabe?
- Moldar o biscoito acabou sendo um pouco mais difícil que criar a receita, mas a gente finalmente conseguiu!
- Uau! Eles estão realmente lindos, tanto os biscoitos quanto as caixas! E eu adorei a ideia de colocar frases felizes neles! Mas eu ainda não sei qual é a minha parte no projeto!
- É aí que está, Ana. O plano é muito maior do que isso ainda!
- Como assim, Pedro?
- Bom, a ideia inicial era só vender os biscoitos aqui na doceria, como um diferencial, sabe? Para ajudar a divulgação e tal. A Bia achou que se a gente conseguisse mais clientes felizes, a doceria ia poder vender mais e você não ia mais precisar se preocupar tanto com o futuro de vocês, ela queria fazer isso para ajudar você, Ana!
- Verdade, Bia? Puxa, eu não sabia que você estava assim tão preocupada comigo!
- Ah, mamãe, desde que o papai morreu que você parece que está sempre triste e preocupada, eu queria fazer alguma coisa para te animar!
- Nossa, isso sim foi uma grande surpresa!
- Então, Ana, quando eu descobri o que eles estavam tramando, eu também tive uma ideia: criar um site para a doceria! Eu gosto de mexer com essas coisas, meio que por hobby mesmo. Aí quando conversei sobre isso com a “gangue”, a gente se tocou que precisava de um plano de marketing também! Porque não adianta ter um produto super legal se ninguém sabe que ele existe, né? Foi aí que a gente decidiu aproveitar o dia das crianças semana que vem para ajudar a divulgar os biscoitinhos da felicidade!
- A gente adorou essa ideia do Pedro de fazer um site para a doceria, mas ainda faltava alguma coisa a mais. E foi aí que a Bia apareceu com uma ideia ainda mais legal!
- Que ideia, Gabi?
- Aproveitar o lançamento dos novos biscoitos para ajudar as crianças do orfanato! O que pode combinar mais com biscoitos da felicidade do que fazer crianças sorrirem? E é aí que você entra, Ana! A gente vai precisar da sua autorização!
- Minha autorização para que?
- Para deixar a gente usar a cozinha da doceria para a gente fazer os biscoitos, dona Ana!
- Ana, o plano é o seguinte: para divulgar os novos biscoitos, no dia do lançamento, todo mundo que trouxer um brinquedo novo ou um livro infantil, ganha um pacotinho de biscoitos da felicidade de graça. Depois a gente pega tudo o que foi doado e leva para as crianças do orfanato do lado da minha faculdade!
- Mas isso é IN-CRÍ-VEL, Gabi!
- Eu também achei a ideia genial, Ana! Então para colaborar, eu vou ajudar a pagar os ingredientes da primeira leva! E ainda convenci meu filho imprestável a usar a empresa dele para patrocinar mais alguns pacotes também. Pelo menos para isso ele tem que servir, né?
- Dona Rute, se o seu filho vai mesmo ajudar nesse projeto, pode ter certeza de que ele ainda tem jeito, não desista dele tão fácil!
- Então estamos pensando em fazer o lançamento dos biscoitos no sábado, dia 11, assim a gente consegue levar os brinquedos no orfanato no dia seguinte, dia das crianças. Se você concordar com o plano, a gente vai criar uma página nas redes sociais hoje mesmo para todo mundo ficar sabendo, aí quem sabe pessoas de outros bairros da cidade venham conhecer a doceria e fazer a doação também. É perfeito! A gente divulga a doceria para o mundo todo e ainda ajuda as crianças do orfanato a ter um dia mais feliz! O que você acha, Ana?
- Onde é que eu assino, Pedro? Hahaha! Mas, sério, qual é a minha parte nisso tudo? Eu também quero fazer parte desse projeto!
- Bom, dona Ana, o que eu, a Maria e a Joana combinamos é que todo mundo ficaria aqui na sexta, dia 10, fazendo hora extra para deixar os biscoitinhos prontos para o dia seguinte. A senhora não vai precisar pagar nada a mais não, a nossa mão de obra é a nossa parte da doação para as crianças do orfanato. Só que a gente vai precisar que a senhora nos autorize a usar a cozinha da doceria até mais tarde.
- Com certeza eu autorizo, senhor Antônio! Aliás, eu também quero ajudar a colocar a mão na massa, literalmente!
- E eu também queria uma autorização sua, Ana! Eu queria levar a Bia para ajudar a distribuir os livros e os brinquedos comigo, afinal a ideia toda foi dela!
- Não precisa de autorização, Gabi, faço questão de ir com ela também!
- Eu também já falei com os meus meninos e a gente vai com vocês levar alguns livros, roupas e brinquedos que eles não usam mais lá no orfanato domingo. E se a dona Ana autorizar, eu queria levar uns biscoitos da felicidade para eles também!
- E eu vou fazer salgadinhos para todo mundo! Porque festinha que se preze precisa ter comida, né? Será que a gente também não podia levar um desses bolos deliciosos da doceria para eles? - Com certeza, dona Rute! Vocês já pensaram em tudo! Eu nem sei o que dizer!
- Eu já falei com a tia Kelly também, ela falou que vai pedir para a tia Paula deixar a gente colocar um cartaz na escola para os pais dos alunos virem aqui sábado fazer a doação, mamãe! A Gabi já até fez o cartaz, você quer ver?
- Nossa, eu estou sem palavras! Vocês tinham razão, valeu a pena esperar para saber qual era o grande segredo afinal! Podem contar comigo nessa gangue, eu vou fazer tudo o que eu puder para ajudar!
- Você está chorando, mamãe? A gente fez alguma coisa errada?
- Não, Bia, nem sempre quando a gente chora é porque está triste. Às vezes, a gente fica tão feliz que transborda, aí a gente chora de felicidade!
- Bom, se não temos mais nada a discutir, vamos comemorar experimentando os biscoitinhos da felicidade! Olha o meu aqui: “Felicidade é um bem que se multiplica ao ser dividido”. Não poderia ser mais verdade! “Dica do dia: ofereça um pouquinho do que você sabe fazer de melhor com alguém que precise.” É o que estou tentando fazer agora! E você, Ana, o que está escrito no seu bilhete?
- “A felicidade não consiste em ter o melhor de tudo, mas em saber tornar tudo melhor.” Acho que essa é mesmo a grande lição que eu tenho aprendido nas últimas semanas, Pedro! “Dica do dia: seja otimista, mesmo quando o dia for ruim. Coisas boas acontecem quando menos se espera!” Nossa, isso parece até que foi escrito especialmente para mim!
- Eu também quero um biscoitinho! “Felicidade é o encontro do sonho com a realidade. Dica do dia: não desista, seu esforço vai valer a pena no final!” Acho que vou colocar isso na minha mesa de estudos para eu ler toda vez em que eu for escrever meu TCC! Hahaha!
- Boa, Gabi! E o seu, senhor Antônio, o que é que diz?
- Diz assim, Pedro, “felicidade é...”

E assim terminou o dia, cada um com seu biscoitinho da felicidade, felizes por fazerem parte daquele grupo de pessoas com grandes ideias. O lançamento dos biscoitos foi um sucesso tremendo, a fila para a doação de livros e brinquedos saía pela porta e ia até a rua. Até o Miguel e a mãe apareceram na doceria naquele dia para levar brinquedos! A gangue toda apareceu para ajudar, pois o senhor Antônio sozinho não dava conta de fazer tantas fornadas de biscoitos para os clientes que não paravam de chegar. Ana e dona Rute foram para a cozinha ajudá-lo, Gabi ficou com Maria e Joana atendendo os clientes e Bia se encarregou de separar e guardar as doações. Alguns clientes gostaram tanto dos biscoitos e das frases que acabaram voltando mais tarde, trazendo outras pessoas para experimentarem e fazerem mais doações! No final do dia, estavam todos exaustos, mas felizes!

- Gente, eu não sei quanto a vocês, mas eu vou para casa tomar um banho! Eu nem sei onde vou arranjar forças para fazer os salgadinhos, mas eu vou me virar!
- Acho melhor a gente ir também, Bia, a gente ainda tem que separar as doações e embrulhar tudo. Só não sei como a gente vai levar tudo isso a pé!
- Eu vim de carro, Ana, não se preocupe, eu levo vocês! E amanhã eu também busco vocês e a dona Rute para a gente ir juntos ao orfanato.
- Como fazemos então? Nos encontramos às 10:00 lá na porta? Eu fiquei de ligar para a diretora do orfanato para avisar a hora que iríamos lá.
- 10:00 parece bom, Gabi. Está bom para você também, senhor Antônio?
- Está sim, Pedro. Só que os biscoitos acabaram! Eles fizeram mais sucesso do que a gente esperava. Será que eu posso ficar aqui mais um pouco para fazer os biscoitos para a gente levar lá amanhã, dona Ana? Eu fecho a doceria direitinho depois.
- A gente fica para te ajudar, Antônio. Eu e a Joana podemos ficar mais um pouco também. A gente te ajudar a empacotar os biscoitos e a limpar tudo depois.
- Obrigado, Maria! Se não for problema para vocês, eu aceito a ajuda!
- Vocês moram muito longe, Ana? Eu posso ir com vocês ajudar a embrulhar os presentes! Ou então eu posso ajudar a dona Rute a fazer os salgadinhos. Eu não sou nenhuma expert na cozinha, mas posso tentar!
- Bom, podemos fazer assim: eu, você e a Bia cuidamos dos presentes e a dona Rute e a Ana cuidam dos salgadinhos, acho menos arriscado assim, que tal? Se ficar muito tarde, eu trago você de volta para a sua casa depois, Gabi.
- Vocês vão virar namorados?
- O que? Como assim, Bia? Não é nada disso, eu...
- Meninos, não se preocupem, o que tiver que acontecer, vai acontecer. Mas, por mim, a sugestão do Pedro é ótima, só preciso saber se a Ana concorda!
- Por mim, tudo bem, dona Rute! Só preciso tomar um banho antes do segundo round também. Senhor Antônio, vou deixar a cópia da chave com o senhor, então, qualquer coisa vocês têm meu telefone, né?
- Não se preocupe, dona Ana! A gente vai terminar tudo aqui e amanhã eu levo a chave para a senhora!
- Vamos, então? Deixa que eu levo a caixa de livros, está mais pesada!
- Eu ajudo a Ana a carregar a caixa de brinquedos! Será que cabe tudo no porta-malas, Pedro?
- A gente dá um jeito, Gabi.
- Mamãe, eu acho melhor a gente pedir pizza para todo mundo, não vai dar tempo de fazer o jantar!
- Ótima ideia, Bia! Você liga para a pizzaria quando a gente chegar em casa?
- Eu ligo, mamãe, pode deixar!

2 colheres de felicidade - IX

Na manhã de segunda-feira, Ana ligou para o doutor Fabrício para lhe informar que já estava com os documentos que ele havia lhe solicitado. Ele lhe pediu que levasse tudo na quarta-feira, já que ele não estaria no escritório antes disso, precisava resolver algumas coisas no fórum naqueles dois dias.

- Está bem, então, fica marcado para quarta-feira à tarde. Até mais, doutor Fabrício.
- Nos vemos quarta, Ana! Prometo que vou tentar não me atrasar desta vez.
- Obrigada. Até breve!

“Bom, agora é hora de distribuir os bilhetes da Bia. Vejamos o que eu sei até agora: temos uma criança de 6 anos com uma mentalidade muito fértil, três adultos, sendo um cozinheiro, uma designer e um faz-tudo. Também tem caixas e biscoitos envolvidos nesse plano de alguma forma. Mas se a ideia deles é só criar embalagens novas para os biscoitos, por que eles fariam tanto segredo?” – Ana se perguntou. “Bom, pelo visto não adianta especular, vou mesmo ter que esperar para saber. Mas pelo menos o Pedro disse que isso deve acontecer ainda essa semana. Ainda bem, não aguento mais de tanta curiosidade!”

No fim do dia, ao buscar Beatriz na escola, Ana teve outra surpresa.

- Mamãe! Você não imagina o que aconteceu! O Miguel doou um montão de brinquedos para a escola! A tia Paula disse que vai arrumar uma sala para virar brinquedoteca, aí todo mundo vai poder brincar com os brinquedos que a escola ganhou! Ninguém mais vai precisar ficar triste porque não tem brinquedo!
- É verdade isso, Bia? Nossa, mas que mudança de atitude do Miguel, heim?
- É verdade sim, Ana! Aliás, você tem dois minutinhos? Eu queria ter uma palavrinha com você.
- Claro, professora Kelly! Bia, você pode me esperar no pátio? Mas não vá fazer muita bagunça, tá?
- Eu vou ficar brincando com a Gabi, tá? A mãe dela sempre se atrasa para vir buscá-la.
- Está bem, qualquer coisa eu estou aqui na sala com a tia Kelly.
- Bom, Ana, eu queria te agradecer pela ideia da festa, pelo bolo e tudo mais. Você e a Bia operaram um verdadeiro milagre nesta escola! O Miguel é outra pessoa agora! Até o pai dele veio aqui conversar com a gente! Justo ele, que nunca vem nem nas reuniões!
- A Bia estava um pouco preocupada porque ela achou que o Miguel pensou que a festa foi feita pelos pais, aí ela estava com medo de como ele ia se sentir quando descobrisse a verdade.
- É justamente por isso que o pai dele veio aqui. O Miguel chegou em casa tão eufórico aquele dia que os pais até ficaram com vergonha por não terem feito nada de especial para o filho no aniversário dele. Olha, pela primeira vez em três anos, a gente finalmente conseguiu conversar a sério com o pai dele e explicar toda a situação. Eu não acho que as coisas vão mudar assim de uma hora para a outra, mas eu me senti absolutamente aliviada depois daquela conversa. E parece que ela teve algum efeito mesmo, como você pode ver pela quantidade de brinquedos que o Miguel e o pai doaram para a escola! Eu e a diretora Paula chegamos à conclusão de que seria melhor deixar que o Miguel continue pensando que a festa foi um presente dos pais. Eu já tinha conversado com a turma antes, então eu sei que ninguém vai contar nada. O pai se emocionou com tudo o que aconteceu e perguntou o que poderia fazer pela escola, como retribuição. A gente só pediu para que ele passe mais tempo com o filho, que dê mais atenção a ele. E quando eu cheguei na escola hoje de manhã, me deparei com caixas e mais caixas de brinquedos no corredor! O Miguel e os pais resolveram doar os brinquedos que o Miguel não usa mais para a escola. O pai disse que ele tem um armário enorme de brinquedos, mas como é filho único, em casa ele passa mais tempo jogando vídeo game do que brincando com os bonecos e com os carrinhos, então eles seriam mais úteis aqui do que na casa deles. Três anos sem responder os bilhetes na agenda e sem comparecer às reuniões e de repente o pai aparece aqui duas vezes seguidas em menos de uma semana!
- Mas isso é IN-CRÍ-VEL, como diz a Bia! Eu nunca imaginei que um simples bolo de dinossauro fosse fazer tanta diferença na vida de alguém!
- Acho que não foi só o bolo. Tem também o cartão que a Bia fez e tem toda essa novidade dos pais finalmente darem um pouco de atenção para o menino, né? Às vezes, um pedaço de bolo e 5 minutinhos de conversa fazem muita diferença na nossa vida. Então, em meu nome e de toda a escola, a gente queria te agradecer por fazer tudo isso acontecer e sem sequer levar os louros dessa vitória! A Bia realmente tem muita sorte por ter uma mãe como você!
- Acho que sou eu quem tem sorte por ter uma filha como ela.
- Acho que vocês duas merecem uma à outra! Obrigada mais uma vez, Ana!
- Não há de que, professora! Bia! Vamos para casa!
- Mamãe, eu achei muito legal o Miguel ter doado os brinquedos para escola! Antes os meninos eram amigos dele por causa dos brinquedos que ele trazia, mas agora os brinquedos são de todo mundo!
- Ah, é, dona Bia? E você vai querer doar os seus brinquedos também?
- Eu não tenho tantos brinquedos assim, né, mamãe! Mas isso me deu outra grande ideia!
- Não me diga que é mais um dos seus segredinhos!
- Não é mais um, é o mesmo, só que melhor!
- E você não vai me contar...
- Ainda não! Preciso falar com a minha gangue primeiro!
- Gangue?
- Ué, não é assim que você anda chamando a gente, mamãe?
- Hahaha! É verdade, Bia. Estou louca para descobrir qual é esse segredo afinal!
- Tem muitas crianças no mundo que não têm brinquedos?
- Acho que sim. Muitas crianças não têm nem o que comer, Bia! Tem gente no mundo que vive no meio da guerra, ou que não tem casa, ou que não tem pai nem mãe. Às vezes a gente reclama dos nossos problemas e nem se dá conta de que tem muita gente passando por coisas piores.
- Mas... como uma criança vive sem pai nem mãe? Criança nem pode trabalhar!
- Eles vivem em orfanatos. É como se você morasse em uma escola, entende? Então você estuda e vive no mesmo lugar, com outras crianças que não têm pais.
- É como ter um monte de irmãos, só que de pais diferentes? E quem cuida deles?
- Sempre tem alguns adultos para cuidar das crianças, geralmente freiras ou algo do tipo.
- E quem dá presente para eles no aniversário, no dia das crianças e no natal? Não vale falar que é Papai Noel!
- Eu não sei exatamente, mas eu acho que nem sempre eles ganham presentes, Bia. As freiras não têm dinheiro para comprar brinquedos para tantas crianças.
- Ah, puxa, seria legal se alguém pudesse doar um montão de brinquedos para eles, que nem o pai do Miguel doou para escola, né, mamãe? Deve ser muito triste não ganhar nada no seu aniversário. Mamãe, você promete que não vai morrer até eu ficar grande? Eu não quero morar em um orfanato!
- Bia, esse é o tipo de coisa que ninguém pode prometer, né? O papai não queria morrer e deixar a gente, foi um acidente. Ninguém sabe como vai ser o futuro. Mas você não precisa se preocupar, se acontecer alguma coisa com a mamãe, a vovó vai cuidar de você, você não vai precisar ir para um orfanato!
- Mas, mamãe, eu já morro de saudades do papai, eu não vou aguentar ficar sem você também!
- Bia, filha, não precisa chorar! Não adianta a gente se preocupar com coisas que a gente nem sabe se vão acontecer! Podem acontecer coisas ruins, mas também podem acontecer coisas boas! O importante é como a gente lida com elas. O Miguel, por exemplo, todo mundo achava que era ruim ficar perto dele, né? E olha agora! Ele está todo feliz e sendo legal com todo mundo e foi VOCÊ quem ajudou a fazer isso! A gente consegue transformar coisas ruins em coisas boas, filha. Dá trabalho, mas vale a pena, não acha?
- Mesmo assim, eu preferiria que você não morresse nunca, mamãe!
- Eu vou ficar com você pelo máximo de tempo que eu puder, eu prometo! Agora, faça uma cara feliz! A gente tem que ficar feliz com as coisas boas que a gente faz pelos outros! A tia Kelly pediu para falar comigo para agradecer por a gente ter ajudado com a festa do Miguel! Ela só não falou com você para ninguém desconfiar que foi a gente que inventou tudo isso, porque é segredo, né?
- Você tem razão, mamãe! A gente forma uma grande dupla! Vai ser muito legal quando a gente puder deixar você entrar para nossa gangue também!
- Ah, então quer dizer que eu vou poder participar também algum dia?
- Logo, logo, mamãe! Eu só preciso combinar com eles antes sobre a ideia que eu tive hoje, aí depois a gente te conta direitinho! Só espero que dê tempo para fazer a parte dessa nova ideia...
- Ok, chega de me deixar curiosa, vamos para casa!

2 colheres de felicidade - VIII

Depois do almoço de sábado, Bia serviu a sobremesa e ganhou vários elogios dos avós e do primo. Depois disso, ela e Carlos foram para o salão de jogos jogar totó e Ana e os sogros ficaram conversando no apartamento.

- E então, como foi o exame, Cláudia? Está tudo bem com o senhor Paulo?
- Ainda não sabemos, o resultado do exame sai em três dias, mas a gente pode pegar pela internet mesmo, não precisamos esperar aqui. Eu até tentei descobrir alguma coisa com o enfermeiro que fez o exame, mas ele disse que sem ter o histórico do Paulo e os outros exames, não seria ético dar um resultado impreciso. A gente vai ter que aguardar mesmo e depois conversar com o nosso médico lá.
- O que o doutor José me disse foi que provavelmente eu já tinha algum problema antes e que essa tensão toda por causa do acidente do Roberto pode ter potencializado os sintomas.
- Assim que a gente chegou em casa depois do enterro, o Paulo passou mal, foi aí que a gente descobriu que ele tinha esse tumor. De certa forma, foi bom, se não fosse por isso a gente poderia acabar descobrindo tarde demais.
- O susto foi tão grande que eu e a Cláudia resolvemos antecipar nosso check up anual. O dela, pelo menos, não deu nada muito fora do normal, só estresse mesmo. Mas se eu tiver que operar, eu opero. O que é uma operação para quem acaba de perder o filho, né?
- E você e a Bia, como estão, Ana? Vocês estão precisando de alguma coisa? Desculpa não ter dado muito atenção para vocês nessa hora tão difícil, mas esse diagnóstico do Paulo também pegou a gente de surpresa. Se não fosse o meu sobrinho Carlos, eu acho que já teria ficado louca! Ele está sendo como um filho, leva a gente para fazer todos os exames! Eu fico preocupada com você e a Bia aqui, sem nenhum parente por perto. Eu sei que a doceria é importante para você, mas, é como eu disse antes, se vocês quiserem, podem vir morar com a gente, vocês sempre vão ser bem-vindas lá em casa.
- Obrigada, Cláudia, mas não queremos dar trabalho para vocês. Por enquanto, estou conseguindo tocar a vida. Ainda estou um pouco perdida com essa coisa de administrar um negócio e fazer o inventário do Roberto, mas tem muita gente me ajudando aqui, eu e a Bia não estamos sozinhas, não se preocupe!
- Eu fico aliviada em saber que vocês estão bem, apesar de tudo. Bem, aqui estão os documentos que eu encontrei em casa, será que algum deles pode ajudar?
- O advogado me deu essa lista com os documentos que estão faltando, vamos conferir aqui... sim, eu acho que é exatamente isso que ele precisa! Ah, que bom que encontramos! Eu não sabia mais onde procurar!
- Eu tinha levado no cartório para reconhecer firma, mas acabei demorando e o meu filho tinha horário para pegar o avião para voltar, aí eu fiquei de entregar depois e no fim nós dois acabamos esquecendo, me desculpe por esse transtorno, Ana!
- Imagina, senhor Paulo! Ninguém nunca espera que pessoa que vive do nosso lado vá morrer de uma hora para a outra, né? O importante é que agora a documentação do Roberto está certinha e o inventário vai ficar pronto mais rápido.
- E está tudo assinado, com firma reconhecida e tudo. Mas, olha, eu sei que essas coisas demoram, se você estiver precisando de dinheiro para comprar as coisas para a minha neta, pode falar, viu? Nós não somos ricos, mas no que a gente puder ajudar a Bia, a gente vai ajudar!
- Por enquanto está tudo bem, senhor Paulo, estou conseguindo me virar. E acho que o melhor que o senhor pode fazer pela Bia agora é cuidar da sua saúde! Ela acabou de perder o pai, ela não pode perder o avô tão cedo, não!
- Ah, com isso você não precisa se preocupar, não, eu ainda quero viver até ver a minha neta se formar na faculdade!
- Mamãe! Já voltamos! O tio Carlos é muito ruim no totó, ele perdeu até de mim!
- Ah, mas você fica girando sem parar, eu te disse que isso não vale, né?
- Mas eu sou criança, criança joga assim, ué!
- Bia, você não pode inventar regras só para poder ganhar, né? Tem que jogar direitinho, senão não vale!
- Ah, tá bom, mamãe. A gente pode considerar empate então, tio Carlos?
- Ok, empate então. Mas eu vou querer revanche quando eu vier para cá outra vez!
- Bia, vem aqui com a vovó um pouquinho! Tenho umas coisas para te mostrar!
- O que é, vovó?
- Eu achei umas fotos de quando o seu pai era criança, da sua idade, você quer ficar com elas?
- Olha, o papai era bochechudo!
- Sim, seu pai foi uma criança gordinha! Mesmo assim ele era lindo, não acha? Ele tinha os olhos iguais aos seus!
- E quem é esse aqui com o meu pai?
- Sou eu, ué, não reconhece o seu avô?
- Mas você tinha muito cabelo antes, vovô! E agora já está ficando careca!
- Ah, é que dá muito trabalho ficar penteando o cabelo todo dia de manhã!
- Bia, eu também trouxe essas coisas aqui, elas eram do seu pai, eu queria que você guardasse de lembrança.
- Um ursinho de pelúcia sem nariz e um cobertor de criança?
- Sim, eram do seu pai quando ele era bebê, eu não tive coragem de jogar fora, mesmo que estejam velhos.
- Mamãe, será que a dona Rute consegue consertar o nariz do ursinho para mim? Eu gostei dele!
- A gente pode pedir para ela, Bia!
- Pessoal, desculpa ser chato, mas acho melhor a gente já ir se despedindo para ir ao aeroporto, já está quase na hora!
- Ah, obrigada, Carlos, se deixar a gente passa o dia todo aqui com a Bia e nem percebe!
- Mas por que vocês precisam ir embora tão cedo, vovó? Eu nem acabei de matar a saudade ainda!
- É que o vovô está um pouquinho doente, então o médico pediu para ele não ficar muito tempo fora de casa. Mas se o vovô sarar logo, quem sabe você não vai poder ir passar uns dias na casa da vovó nas suas férias, heim? Torce para o vovô ficar bom rapidinho, tá?
- Eu vou torcer com todas as minhas forças! Ah! Vovó! Você pode me dar o seu endereço?
- Para você ir me visitar nas férias, Bia? Pode deixar que a vovó te busca no aeroporto, não se preocupe!
- Não, vovó, é outra coisa, mas é surpresa! Quando estiver tudo pronto, eu mando para você pelo correio!
- Que tipo de surpresa, Bia?
- Não posso contar ainda, senão não vai ser mais surpresa, né?
- A Bia anda cheia de segredinhos ultimamente, Claudia. É praticamente um mistério ambulante!
- Mas vocês duas vão gostar da surpresa, eu tenho certeza!
- Está bem, aqui está o endereço, Bia, guarda direitinho, tá? Vovó está curiosa!
- E o vovô também!
- Se cuida, Ana, se vocês precisarem de mais alguma coisa, me liga, tá?
- Pode deixar, Cláudia! Por favor, me avisa quando tiver notícias sobre o exame, está bem?
- Aviso sim, a gente nem comentou nada antes porque não queria te dar mais preocupações. Mas vai dar tudo certo, para todos nós, chega de desgraça nessa família, né?
- Boa viagem, senhor Paulo! Cuida bem dessa saúde, heim?
- Pode deixar, Ana! Dá um beijo no vovô, minha netinha linda!
- Beijo, vovô! Beijo, vovó! Boa viagem!
- E eu, não ganho beijo, não?
- Beijo, tio Carlos! Eu vou treinar jogar totó sem girar, aí a gente vai ter nossa revanche na próxima vez!
- Vou aguardar ansiosamente! Tchau, Bia! Tchau, Ana! Obrigado pelo almoço, estava tudo muito bom!
- Obrigada por terem vindo! Boa viagem!

O resto do sábado e o domingo passaram tranquilamente naquela semana. Bia e Ana arrumaram a casa, fizeram a lição e assistiram juntas a um desenho na televisão. Bia aproveitou quando a mãe estava ocupada fazendo o jantar para espionar a caixa que a Gabriela havia lhe mandado. Achou tudo lindo, fechou a caixa novamente e escreveu bilhetes para cada um dos membros do seu grupo secreto. Estava quase tudo pronto para a grande surpresa.

2 colheres de felicidade - VII

No dia seguinte, Bia chegou eufórica da escola.

- Mamãe, a festa foi um sucesso! Alguns meninos até levaram presente de aniversário para o Miguel, nunca vi ele tão feliz! Todas as tias falaram que o seu bolo estava uma delícia, como sempre! O único problema é que ele pensa que foram os pais dele que fizeram a festa sem contar para ele. Claro que ninguém contou nada, né? Só espero que ele não fique muito decepcionado quando ele chegar na casa dele.
- Ah, é? Então quer dizer que hoje ele nem arranjou encrenca com ninguém? E o primeiro pedaço, para quem foi?
- Ele estava chato como sempre antes do recreio, mas depois da festa ele ficou tão contente que nem lembrou mais de ser chato! Eu queria saber o que ele pediu quando foi cortar o bolo, ele demorou um tempão para pensar! E ele já tem tudo, o que mais ele pode querer?
- Nem sempre as coisas são como parecem, Bia. Pode ser que tenha muita coisa que ele queira e que não pode ser comprada.
- Tipo a felicidade que a gente coloca na comida?
- É, tipo isso. E o cartão, ele leu? Gostou?
- A tia Kelly ajudou o Miguel a ler. Mamãe, eu acho que ele gostou mais do cartão do que dos outros presentes que ele ganhou! Acho que é porque tinha felicidade nele! Mesmo que ele seja muito chato com a gente às vezes, todo mundo se esforçou para deixar o cartão mais bonito porque todo mundo se empolgou com a ideia de comer bolo! Hahaha!
- Bom, pelo menos por um dia vocês viram que é possível fazer as coisas de um jeito diferente, né? Quem sabe de agora em diante vocês todos não consigam ser amigos de verdade.
- Não dá para fazer festa todo dia, mas vamos ver, né, mamãe! Amanhã eu te conto como ele vai se comportar.
- Eu desejo boa sorte para todo mundo então! Independentemente do que vai acontecer, eu tenho muito orgulho da minha filhinha linda que fez tudo isso acontecer!
- E eu tenho orgulho de ter a melhor mãe do mundo! Eu te amo, mamãe!
- Eu te amo também, Bia! Muito, muito, muito!

Na quinta-feira, ao fechar a loja, Pedro pediu a Ana para esperar um minuto, tinha esquecido que precisava entregar uma caixa a ela.
- Uma caixa? Caixa do que, Pedro?
- Bom, na verdade a caixa é para a Bia, será que você pode levar para ela? Foi a Gabi quem passou aqui mais cedo e pediu para entregar para ela.
- Ah, o tal segredinho da Bia. Não me diga que é você o tal quarto elemento da gangue!
- Hahaha! Ana, você fala como se a gente estivesse fazendo algo ilegal, mas eu tenho certeza de que você vai gostar quando souber o que é. E você conhece o ditado: duas cabeças pensam melhor do que uma... um monte então, imagina só no que vai dar! Eu mal fiquei sabendo do projeto e já estou com milhões de ideias para ele!
- Eu só não entendo porque todo mundo pode saber o que está acontecendo e eu não. Se é tão bom assim, por que só eu não posso ajudar?
- Porque, em parte, a surpresa é para você! Bom, não só para você, é para a doceria também.
- Para a doceria? Mas o que a Bia tem a ver com isso? Espero que isso deixe de ser segredo logo, porque eu estou cada vez mais confusa e curiosa com essa história!
- Não se preocupe, a gente só precisa terminar de acertar os detalhes. Na hora de colocar o plano em prática, você vai saber do que se trata, até porque a gente vai precisar da sua permissão.
- Pelo menos existe algum tipo de cronograma para essa maluquice toda?
- Segunda semana de outubro, é tudo o que eu posso dizer. Mas se tudo der certo, semana que vem você já vai saber do que se trata. É que começou com uma ideia pequena e aí cada pessoa que foi entrando na “gangue”, como você chama, foi incrementando mais a ideia até ela virar um projeto bem maior! E estamos todos muito empolgados, acho que isso tem tudo para dar certo!
- Essa semana mesmo eu estava dizendo para a minha vizinha que eu preciso exercitar mais esse meu lado de confiar mais nas pessoas ao meu redor, acho que eu estou sendo obrigada a fazer isso agora, quer eu queira, quer não!
- Então você promete que leva a caixa para a Bia sem espiar o que tem dentro dela?
- Ok, prometo. Mesmo me corroendo de curiosidade!
- Isso tudo vai valer a pena, eu garanto! Boa noite, Ana! Até amanhã!
- Até amanhã, Pedro!

A sexta-feira transcorreu normalmente, exceto pelo incrível trânsito de bilhetes, caixas e biscoitos entre Bia e sua “gangue”.

“Seja lá o que for que eles estejam tramando, parece que está mesmo virando uma grande bola de neve! O que será que uma garotinha de 6 anos e quatro adultos podem estar criando juntos?” – foi o pensamento que acompanhou Ana durante o dia inteiro. “E o pior é que além de não me contarem nada, eu ainda fico servindo de pombo-correio entre eles...”, suspirou. Se não confiasse tanto nas pessoas envolvidas, Ana já teria exigido que eles contassem o que estavam planejando. “Confiar, delegar, desapegar”, Ana dizia para si mesma, como um mantra. “Tenho que aprender a deixar de ser tão controladora.”

Quando chegou em casa depois do trabalho, ela tomou um banho e depois foi fazer o jantar enquanto conversava com a filha sobre o dia seguinte.

- O que você acha que podemos fazer para o almoço de amanhã? Você lembra que seus avós vão vir comer conosco, né?
- A vovó gosta muito daquele seu arroz colorido e o vovô adora lasanha!
- Está bem, mas arroz não combina muito com lasanha, vamos ter que fazer alguma outra coisa para a vovó comer com o arroz, não acha?
- Eu posso comer batatas? Já sei! Batatas com carne e aquele pozinho amarelo! Que fica meio ardidinho!
- Curry? Pensei que você não gostasse de curry!
- Eu gosto, mas só quando não está muito forte, porque senão eu tenho que beber um litro de água! E é melhor a gente não fazer muito forte mesmo, porque se o vovô quiser comer também, ele pode acabar engasgando e cuspindo a dentadura! Hahaha!
- Bia! Isso é coisa que se diga! Nem pense em falar essas coisas perto do vovô, heim? Senão ele vai achar que a mamãe não está te educando direito!
- Desculpa, mamãe! Mas eu já vi a dentadura do vovô! É engraçado quando ele fica sem dentes! Hahaha!
- Ai, ai, ai, como é que eu fui ter uma filha tão danadinha?
- Eu posso fazer a sobremesa? Deixa, deixa?
- E o que a senhora está pensando em fazer para sobremesa?
- Gelatina colorida! A gente faz a gelatina depois da janta e amanhã de manhã a gente junta tudo!
- Uhm, pode ser, deixa eu ver se a gente tem gelatina em casa... Sim, temos 3 pacotes, acho que é o suficiente, não vem tanta gente assim. Bia, no fim das contas ontem você acabou não me contando se o Miguel está se comportando melhor agora.
- Ah, está sim, mamãe! Hoje ele até ganhou um elogio da tia Kelly porque escreveu uma frase inteira certa! E você não vai acreditar! O pai dele foi na escola hoje!
- Jura? E você sabe qual foi o motivo da visita?
- A tia Kelly não quis falar, mas pelo menos o pai dele não estava com cara de bravo. Eu estava com medo que se o Miguel descobrisse que a festa não foi feita pelos pais dele, ele fosse ficar emburrado de novo. Ou que o pai dele fosse ficar bravo. Mas eu acho que está tudo bem, o Miguel estava até feliz por o pai dele ter finalmente ido na escola, porque ele nunca vai, nem quando tem festa. O pai dele só ficou uns minutinhos, ele falou com a tia Kelly e com a tia Paula. E todo mundo na sala queria ficar na porta espionando para ver a cara dele, mas a tia Tereza não deixou, então eu só vi rapidinho, depois tive que voltar para o meu lugar.
- Se você viu rapidinho, quer dizer que a senhora era uma das pessoas que estavam na porta quando a tia pediu para vocês ficarem sentados, é isso?
- Xi, falei demais! Mas foi só um minutinho, mamãe! Eu juro! Eu nem atrapalhei a aula, porque a tia Kelly nem estava na sala, ela estava falando com o pai do Miguel!
- Mas se a tia Tereza estava com vocês enquanto a tia Kelly estava fora, então você também tem que obedecer a tia Tereza, né? Não pode ficar fazendo bagunça fora de hora!
- Desculpa, mamãe! Foi mais forte que eu!
- Dessa vez passa, dona Bia! Eu fiz yakissoba, come direitinho e depois vamos fazer a gelatina, está bem?
- Obaaa! Adoro yakissoba! E depois da gelatina, a gente pode ler mais um pouquinho do livro da Matilda? Estou gostando muito dele!
- Claro, filha! Eu também estou gostando da história, foi uma ótima escolha!

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

2 colheres de felicidade - VI

O dia seguinte seguiu agitado, como sempre eram as coisas na doceria. Ana tentou convencer Antônio a lhe contar o que ele e a filha estavam tramando, mas ele apenas respondeu que ela não precisava se preocupar, seria uma boa surpresa quando estivesse pronta. Ana indagou se isso tinha alguma coisa a ver com o bolo do Miguel e Antônio disse que não.

- Por falar nisso, dona Ana, de que sabor a senhora vai querer o bolo? E para que horas?
- Acho que a Bia comentou alguma coisa sobre todo mundo gostar de chocolate. Será que a gente consegue terminar o bolo até umas 9:30? Aí eu posso pedir para o senhor Wilson, o tio da perua, vir pegá-lo aqui e levá-lo para a escola. O intervalo das crianças é às 10:00.
- É, vai ser um pouco corrido, mas vou deixar o que eu puder já adiantado hoje, aí amanhã a gente termina a decoração. São quantas crianças na turma da Bia?
- Acho que cerca de 20, mais ou menos. Vamos precisar mandar também umas 3 garrafas de refrigerante, copinhos e guardanapos.
- Então fazemos tudo no mesmo esquema que fizemos no aniversário da Bia? Só que com um dinossauro ao invés de uma princesa.
- Sim, seria ótimo. Senhor Antônio, me desculpe por deixar tanta coisa assim em suas mãos, eu não estou dando conta de fazer tudo sozinha sem o Roberto...
- Dona Ana, todo mundo aqui entende muito bem pelo que a senhora está passando. A senhora e o senhor Roberto sempre foram ótimos patrões, ninguém aqui tem do que reclamar. A senhora sempre ajuda a gente. Quando a gente pode retribuir, nós ficamos felizes. E por falar nisso, fiz uns testes de biscoito aqui parecidos com os que a Bia pediu, será que a senhora pode levar uns para ela experimentar?
- Bom, se esse segredinho de vocês não tem a ver com o bolo... deve ter alguma coisa a ver com os biscoitos, certo?
- Dona Ana, é uma coisa boa, eu garanto! A senhora tem uma filha muito esperta e eu sei que a senhora vai gostar muito da surpresa. Eu, particularmente, achei a ideia genial!
- Ai, ai, ai... pelo visto nem adianta eu continuar perguntando mesmo. Vou só torcer para que vocês dois saibam o que estão fazendo.
- Três, dona Ana! Não se esqueça que a menina Gabriela também está ajudando na surpresa! E, talvez quatro, em breve, vamos ver...
- Quatro? Quem é o quarto integrante dessa “gangue”?
- Isso também é parte da surpresa, me desculpe! Hahaha!

O restante do dia correu sem incidentes na loja. Assim que chegou em casa, Bia veio correndo mostrar à mãe o cartão assinado por toda a turma.

- Olha, mamãe! Todo mundo assinou! A tia Kelly até pediu para as outras tias da escola assinarem também! Só não sei se o Miguel vai conseguir ler tudo, ele lê muito devagar! Acho que ele vai demorar uns três dias para ler todo o cartão!
- Bia, nem todo mundo é um geniozinho que nem você, que aprendeu a ler sozinha, né? Você precisa aprender a ter mais paciência com as outras crianças, querida!
- E o bolo, mamãe? Ficou bonito?
- Ainda não terminamos de decorar o bolo, Bia! Vamos fazer isso amanhã cedinho, assim que a doceria abrir. Depois já combinei com o senhor Wilson para ele pegar o bolo na doceria e levá-lo na escola na hora do recreio. Você mostrou meu bilhete para a tia Kelly? Para ela saber que horas o bolo vai chegar?
- Sim, mamãe, ela disse que tudo bem, a gente já combinou tudo quando o Miguel saiu para ir ao banheiro, todo mundo já sabe da festa surpresa, menos ele! Todo mundo acha que foi ideia da tia Kelly! Algumas meninas não gostaram disso, falaram que o Miguel é muito chato e não merece festa, mas aí a tia Kelly explicou que se a gente quiser que ele pare de brigar com todo mundo, a sala inteira tem que se esforçar para ser mais legal com ele também. Aí eu falei que pelo menos se não der certo, todo mundo vai comer um bolo delicioso! Hahaha!
- É isso aí, Bia! Se a gente não tentar mudar as coisas, a gente também não pode reclamar que tudo dá errado, né? Ah! O telefone está tocando! Vou lá atender! Bia, tem um recado do senhor Antônio para você na minha bolsa, você pega lá? Está no bolsinho pequeno, junto com um pacotinho de biscoitos que ele mandou também.
- Oba! Pode deixar que eu pego, mamãe!
- Alô?
- Ana, é a Cláudia. Eu encontrei alguns documentos do carro e do Roberto aqui, mas não sei se não esses que você quer. Você vai estar em casa no fim de semana? Nós podemos levar aí para você.
- Puxa, dona Cláudia, não precisa se preocupar, a senhora pode mandar por sedex se achar melhor.
- Bom, Ana, é que na verdade o Paulo tem um exame médico para fazer aí na sexta-feira, aí a gente ia aproveitar para visitar o túmulo do Roberto e ver nossa neta, se estiver tudo bem para você.
- Exame? Mas é alguma coisa grave? Vocês vão vir de outro estado até aqui por causa de um exame?
- Nós ainda não sabemos se é grave. Nosso médico aqui detectou um pequeno tumor e pediu um exame mais completo urgente, mas aqui no nosso estado só tem um hospital que faz esse exame e ele só tem vaga para daqui a 3 meses. Um amigo nosso conseguiu uma vaga aí na sua cidade, então temos que aproveitar, não é? Nosso médico acha que quanto mais cedo descobrirmos o problema, melhor. Porque dependendo do resultado, o tumor pode até acabar evoluindo para um câncer.
- Puxa, dona Cláudia, eu nem sei o que dizer... é claro que vocês podem vir aqui em casa, aliás, podem até ficar hospedados aqui com a gente! A Bia ia adorar, com certeza, ela adora ser paparicada pelos avós!
- Não se preocupe, Ana, o meu sobrinho Carlos vai conosco, ele já fez a reserva para a gente em uma pousada perto do hospital. O exame será na sexta, mas vamos ficar até sábado à noite, então se pudéssemos nos encontrar no sábado à tarde, isso seria ótimo.
- Bom, então por que vocês três não vêm almoçar aqui em casa sábado? Aí podemos ver os documentos e conversar o resto da tarde.
- Sim, acho que seria muito bom. Eu encontrei algumas coisas do Roberto aqui que eu gostaria que ficassem com a Bia, se você não se incomodar. Algumas fotos e coisas de quando o pai dela ela criança. Ela ainda é bem novinha, mas eu queria que ela tivesse alguma coisa para se lembrar dele.
- O Roberto era um super-pai, tenho certeza de que a Bia nunca vai se esquecer dele. Nos vemos sábado então, dona Cláudia?
- Está bem, Ana! Até sábado! Mande um beijo para a minha neta.
- Mamãe, pelo o que o senhor Antônio disse no bilhete, acho que você não vai precisar esperar muito para saber da surpresa, não! Ele falou que acha que semana que vem a gente já vai poder te contar tudo! E ele também escreveu que agora tem mais uma pessoa ajudando a gente e eu gostei da ideia dessa pessoa nova!
- Bia, sua avó lhe mandou um beijo, ela, o vovô e o Carlos, primo do seu pai, vão vir almoçar com a gente sábado!
- Que IN-CRÍ-VEL, mamãe! Eu adoro conversar com a vovó! Ela vai ficar aqui em casa?
- Não, eles vão ficar em um hotel, só vão passar a tarde aqui com a gente mesmo, é uma visitinha rápida.
- Ah, que pena. Mas você não vai me perguntar da surpresa, mamãe?
- Já entendi que não adianta. Fiz um monte de perguntas para o senhor Antônio hoje e ele não me disse absolutamente nada. O que me resta é ter paciência e esperar, né?
- Não fica triste, mamãe! Você vai gostar, eu sei!
- Não estou triste, Bia. É que a mamãe anda muito cansada ultimamente.
- Eu queria ser grande, aí eu ia poder te ajudar na doceria e você não ia ficar tão cansada, né, mamãe?
- Bia, você me ajuda muito sendo uma boa aluna na escola e deixando suas coisas arrumadas aqui em casa, não precisa fazer mais do que isso, está bem? Ué, é a campainha! Quem será a essa hora?
- Boa noite, Ana! Desculpe te incomodar a essa hora, mas eu fiz torta de milho, você quer um pedaço?
- Dona Rute! Entra, por favor! Bia, a dona Rute trouxe torta para a gente!
- Obaaaa! Dona Rute, a senhora adivinhou, a gente ainda nem jantou! Vou colocar os pratos na mesa para gente comer torta, tá, mamãe?
- Obrigada, Bia. Pega o chá na geladeira também, querida. E os copos!
- Ana, desculpe eu vir assim sem avisar, mas eu estou precisando desabafar, senão eu acho que vou explodir!
- A senhora brigou com seu filho outra vez, adivinhei?
- Como foi que eu fui ter um filho tão banana, heim? Aquele traste da minha nora faz gato e sapato dele e ele ainda fica lambendo os pés dela, vê se pode! A gente cria os filhos com tanto amor e carinho, aí eles se apaixonam e se esquecem de tudo o que a gente fez por eles, ingratos! Ai, desculpa, eu não deveria estar falando essas coisas na frente da Bia!
- Tá bom, já entendi, conversa de adulto. Mamãe, eu vou tomar banho, aí vocês duas podem conversar sozinhas enquanto isso. Mas conversem rápido porque eu sou bem ligeira no banho, tá?
- Obrigada, Bia! A gente come torta juntas quando você voltar.
- Essa sua filha é um amor! Quem dera eu ter uma filha assim tão compreensiva.
- O que foi que aconteceu dessa vez, dona Rute?
- Bom, você sabe que eu morava com o meu filho até ele arranjar aquela namoradinha piriguete dele, né? E tanto ela fez que eu não aguentei mais e vim morar sozinha, só para ficar longe dela. Mas eu disse para ele tomar cuidado, que ela só queria saber era do dinheiro dele, mas ele me ouviu? Claro que não! Deu até carro para ela! Agora ela está de graça com outro cara e quer que meu filho pague pensão! Vê se pode! Eles nem tem filhos, não são casados no papel, de onde que ela tirou essa ideia de pensão? E o idiota lá com pena dela! Ele acha que ela está “confusa”, mas que vai voltar para ele a qualquer minuto! Ah, faça-me o favor, mas é muito mané mesmo!
- Dona Rute, eu sei que não sou a melhor pessoa para dizer isso, mas... acho que a senhora precisa aprender a ser menos controladora! O seu filho já é adulto, tem o próprio negócio, acho que ele já provou que consegue se cuidar sozinho, não é? E se ele quebrar a cara com essa moça, bem, é a vida, a gente precisa errar de vez em quando para aprender, não é?
- Mas para que ele tem mãe? Se ele não ouve os conselhos da pessoa que mais se importa com ele no mundo, quem ele vai ouvir?
- A vida. A gente sempre quer o melhor para os nossos filhos, mas a gente não pode andar de mãos dadas com eles a vida inteira, senão eles nunca vão aprender a andar sozinhos. Eles vão cair, vão se machucar, a gente vai sofrer, mas tudo o que a gente pode fazer é estar lá para ajudá-los a se levantar e dizer para eles tentarem de novo. Foi isso que os nossos pais fizeram por nós, não foi?
- É, você tem razão, Ana. Não é fácil admitir, mas vou ter que aprender a deixar meu filho fazer suas próprias escolhas, mesmo que eu saiba como elas vão terminar.
- Dona Rute, acho que esse é um exercício que nós duas vamos ter que praticar. Desde que o Roberto se foi, eu estou ficando quase louca tentando manter tudo sob controle, mas o fato é que eu cheguei à conclusão de que preciso soltar um pouco as rédeas ou vou acabar em uma camisa de força. Tem tanta gente boa disposta a me ajudar e eu fico nessa paranoia de querer fazer tudo sozinha. Acho que eu também preciso praticar um pouco a delegar as coisas.
- Mamãe, já terminei, posso voltar para a sala?
- Pode sim, Bia, a torta já está no seu prato!
- Ana, obrigada pelo conselho. Acho que eu não iria conseguir dormir se eu não conversasse com alguém hoje!
- Não há de que, dona Rute! A senhora vive me salvando das enrascadas! Deixe-me retribuir um pouquinho, né? E foi até bom, porque assim eu começo a me auto-policiar também.
- Uhm, essa torta está uma delícia! Deve ter muita felicidade nela!
- Como é que é, Bia?
- Ah, nada não, dona Rute, segredinho que o senhor Antônio me contou!
- Pois é, agora eles dois vivem de segredinhos por aí...
- A Bia e o seu ajudante da doceria? Mas que coisa, heim? Agora até eu fiquei curiosa!
- Semana que vem, dona Rute, semana que vem você vai saber! Pode aguardar!
- Está bem, dona Bia! Vou aguardar ansiosamente!

domingo, 28 de setembro de 2014

2 colheres de felicidade - V

Na segunda-feira, enquanto Bia bolava um plano para a festa surpresa junto com a professora Kelly, Ana dava as últimas instruções a Pedro antes de ir se encontrar com o advogado.

- Pode deixar, Ana, está tudo sob controle! Não precisa se preocupar! Agora vá, você tem coisas mais importantes a resolver hoje! Boa sorte!
- Obrigada, Pedro. Se precisar de alguma coisa, me ligue!
- Se precisarmos de alguma coisa, a gente se vira, Ana! Você não pode cuidar de tudo ao mesmo tempo sozinha! Confie em nós, a gente vai manter tudo funcionando direitinho enquanto você resolve seus outros problemas, ok? Pode ficar tranquila! A doceria é o nosso sustento também, não vamos deixar que nada de errado aconteça com ela!
- Realmente eu não sei o que seria de mim sem vocês todos, obrigada!

E assim Ana se dirigiu ao escritório de advocacia. A burocracia toda era a segunda pior parte de se tornar viúva. A primeira era a insegurança de não saber se estava administrando bem a loja e criando direito sua filha. Roberto fazia muita falta nessas horas em que Ana precisava de alguém com quem conversar. Doutor Fabrício acabou atendendo Ana mais de meia hora depois do horário combinado. Ana já estava em puro estado de ansiedade.

- Dona Ana, boa tarde! Me desculpe pelo atraso, meu cliente anterior tem um caso bem complicado.
- Boa tarde, doutor Fabrício! O senhor já tem alguma novidade sobre o inventário do meu marido?
- É por isso que a chamei aqui, dona Ana. Eu examinei toda a documentação que a senhora me trouxe, mas me parece que ela está incompleta. Algumas coisas não estão batendo com o que o seu marido declarou no imposto de renda do ano passado.
- Não estão? Mas eu trouxe tudo o que eu achei! Roberto era muito cuidadoso com a documentação da doceria e eu também trouxe tudo que eu tinha da documentação pessoal dele e todos os comprovantes que consegui com a gerente do banco, o que mais pode estar faltando?
- Sim, não há de errado com a documentação da doceria, isso está impecável. Mas me parece que vocês venderam um automóvel e mais algumas coisas para conseguir o dinheiro para a loja, não é? São esses documentos que eu não encontrei. E se não estiver tudo certinho, mesmo que seja uma coisa menor, o caso vai ficar parado e vai demorar mais tempo até que você e sua filha possam usufruir da herança dele.
- Bem, nós vendemos o carro para os meus sogros, talvez meu marido tenha mandado toda a documentação para eles ao invés mandar apenas a cópia...
- Se a senhora puder entrar em contato com eles e pedir para que eles tragam os documentos, poderemos dar prosseguimento com o caso mais rapidamente.
- Meus sogros moram em outro estado, eles estiveram aqui para o enterro faz um mês, não sei se eles vão ter condições de vir para cá tão cedo outra vez, talvez eu possa pedir para que eles mandem tudo pelo correio.
- Eu não recomendaria, deve-se evitar mandar documentos originais pelo correio, sempre pode haver algum extravio. Mas se não houver outro jeito, peça para que eles providenciem uma cópia autenticada para guardar com eles antes de mandarem o original e peça que mandem tudo por sedex, é mais seguro. Aqui está a lista de coisas que estão faltando no dossiê.
- E eu nem sequer sei se esses documentos estão mesmo com eles... Bem, supondo que eu consiga o que falta, quanto tempo o senhor acha que demora até que a gente consiga desbloquear os bens?
- Esse é um processo bem demorado. O seu caso é até um pouco mais simples, porque não nenhuma disputa judicial, mas alguns chegam a demorar 3, 4 anos para mais!
- Ah, meu Deus, eu não posso esperar tanto tempo assim! Todo o dinheiro da doceria está na conta do Roberto, como eu vou pagar o 13º dos funcionários? E as férias?
- Senhora Ana, me desculpe, mas essa é uma coisa que eu realmente não entendi. Se vocês dois eram sócios na empresa, por que a conta ficou somente no nome dele? Se vocês tivessem aberto uma conta conjunta solidária ao invés disso, você não teria nenhum problema para sacar o dinheiro na ausência dele!
- Sim, eu sei, mas agora não há o que fazer. Na época em que a gente precisou abrir a conta, minha filha ficou doente e eu fiquei praticamente duas semanas inteiras em casa, cuidando dela. Eu disse ao Roberto para abrir a conta sozinho, para não atrasar nosso cronograma com os fornecedores e com os credores, depois eu iria ao banco com ele e nós mudaríamos a conta para conjunta. Mas as coisas foram acontecendo como uma avalanche e eu acabei não indo resolver isso. Nunca pensei que perderia meu marido assim tão cedo, essa coisa da conta parecia tão banal na época, até porque era ele quem cuidava de tudo. Eu nunca precisei me preocupar com as contas da doceria, eu não entendo nada de administração. E agora estou me sentindo completamente perdida, não sei como vou dar essa notícia aos funcionários...
- Calma, dona Ana! Não vamos entrar em desespero ainda, está bem? O inventário vai mesmo demorar pelo menos um ano para sair, se conseguirmos a documentação que falta. Mas há outras saídas. Podemos tentar conseguir a pensão do seu marido e o seguro mais rapidamente, talvez até a tempo de pagar o 13º dos funcionários sem precisar recorrer a nenhum empréstimo.
- Pensão? Seguro? Eu nem sabia que tinha direito a isso.
- Pois é, mas o seu marido cuidou disso tudo para a senhora. Olha, aqui estão as instruções que a senhora precisa seguir para solicitar ambos. A senhora precisa ir pessoalmente nestes endereços, levando esses documentos. Já aviso que o atendimento é um pouco demorado, talvez a senhora acabe gastando de 2 a 3 horas em cada lugar. A senhora deve começar a receber um ou dois meses depois, mas assim que receber vai vir tudo o que tiver acumulado retroativo à data de falecimento. Se a senhora conseguir fazer isso ainda essa semana, deve receber tudo no final de novembro, a tempo de pagar a primeira parcela do 13º dos funcionários.
- Sim, isso resolveria boa parte dos meus problemas, só tenho medo dessa incerteza quanto ao tempo que demora.
- Infelizmente não há o que fazer quanto a isso. Mas, de qualquer forma, primeiro a gente tem que fazer a nossa parte, para depois poder correr atrás dos nossos direitos, não é? Não dá nem para reclamar da burocracia se gente nem tentar dar entrada na papelada primeiro.
- Isso é verdade. Bom, eu já tive que deixar a doceria sozinha hoje mesmo, vou aproveitar e ver se dá tempo de resolver pelo menos uma parte disso tudo. E vou ligar para os meus sogros à noite e ver se consigo ajuda com os documentos do carro. Obrigada, doutor Fabrício. O senhor tem esse poder de me deixar tensa e aliviada ao mesmo tempo, deve ser algum dom especial dos advogados.
- Hahaha! Pode contar comigo sempre, dona Ana! E obrigado pelos brigadeiros, heim? Seus doces são sempre bem-vindos!
- Prometo que faço um bolo especial para o senhor quando esse pesadelo todo terminar!
- Então vou tentar terminar com ele o mais rápido possível! Não se esqueça de me avisar se conseguir o restante dos documentos, está bem?
- Aviso sim, pode deixar. Boa tarde!

E assim Ana passou o resto da tarde em filas intermináveis, tentando descobrir como fazer para receber a pensão e o seguro de vida do marido. À noite, com os pés doendo de tanto ficar em pé, ligou para os sogros perguntando dos documentos. A sogra ficou de procurar e retornar a ligação no dia seguinte. Depois deixou Bia conversando com os avós e foi tomar um banho. Quando terminou, viu que havia uma mensagem de Pedro no celular, dizendo que tudo estava bem na doceria e que todo mundo já estava indo para casa. Ana estava exausta. Deitou-se na cama e teria dormido se Bia não entrasse no quarto perguntando o que teriam para o jantar.

- Ah, filha, mamãe está tão cansada hoje, será que podemos apenas esquentar a pizza que sobrou de ontem?
- Tinha muita gente na doceria hoje, mamãe? É por isso que você está cansada?
- Não, querida, na verdade eu não sei. Mamãe teve que sair para resolver outras coisas, coisas do papai.
- Mas se o papai morreu, o que você tem que resolver?
- Coisas de adulto, Bia. Documentos, contas, essas coisas. Mamãe teve que ir a vários lugares, ficou em pé na fila várias horas.
- Então depois que a gente comer a pizza, eu vou ler para você hoje, está bem, mamãe? Eu fico lendo até você dormir! Depois te dou beijinho de boa noite e vou para o meu quarto, que nem você faz comigo! Só, por favor, não se esquece do bolo do Miguel amanhã, tá, mamãe? Porque eu já falei para a tia Kelly da surpresa e quase todo mundo já assinou o cartão, eu não quero que todo mundo pense que eu sou mentirosa!
- Ah, puxa, Bia, não se preocupe, eu já falei com o senhor Antônio, ele vai me ajudar a fazer o bolo. E por falar nisso, quase me esqueci! Ele mandou um bilhete para você, respondendo o que você perguntou. O que é que vocês dois estão armando, heim? Cheios de segredinhos! E eu nem posso saber?
- Ainda não, mamãe, só quando estiver tudo pronto! E a Gabi também vai me ajudar, ela prometeu!
- Gabi? Até a sua amiga da escola sabe e eu não?
- Não, mamãe! É a Gabi SUA amiga! Aquela que me ajudou a fazer o cartão de aniversário quando eu fui na doceria!
- Ah, é? E sobre o que vocês duas conversaram, heim?
- Segredo, ué. Você não me engana, mamãe, eu não vou te contar!
- Está bem, filha, hoje eu estou cansada demais para discutir. Vamos comer pizza e dormir!
- Mas eu vou ler o livro da Matilda para você antes, heim?
- Está bem, Bia! Eu vou adorar!