quarta-feira, 1 de outubro de 2014

E se...

Estava um sol escaldante e os escravos construíam uma nova pirâmide para o faraó recém escolhido pelos deuses. Era um trabalho sufocante e muitos se perguntavam quando os bons deuses trariam a abençoada chuva outra vez.

O novo faraó havia exigido que as paredes de sua futura tumba fossem decoradas com todos os deuses para que ele tivesse todo o tipo de proteção no caminho para o outro mundo. Pinturas detalhadas e diversas esculturas foram colocadas nas câmaras principais da construção, onde apenas era possível chegar depois de passar por um intricado e traiçoeiro labirinto.

No palácio real, os sacerdotes estavam agitados: logo chegaria a época da Festa de Opet, realizada todos os anos para o rejuvenescimento do Faraó e dos deuses e comemorada, tradicionalmente, na época da cheia do Nilo. Esse ano, porém, as chuvas estavam demorando a chegar, o que era considerado por muitos como um mau presságio.

O faraó estava em seus aposentos, ouvindo o lamento de sua corte, sem se abalar com tempo lá fora. Ele era um deus, afinal, por que deveria se preocupar? Tinha pouco mais de 12 anos e um reino inteiro aos seus pés, mas estava visivelmente entediado. Ser um deus deveria ser divertido, mas passar seus dias ouvindo preces e reclamações não era bem a sua idéia de diversão. Levantou-se e caminhou até a janela sem dizer uma palavra, deixando todos de sua corte perplexos e sem saber o que fazer. "Tantos deuses a nosso dispor e nenhum que seja capaz de me livrar deste tédio... que desperdício!", pensou. Nesse mesmo instante, um raio cortou o céu ao longe e o barulho de seu trovão atravessou a sala logo depois. Os sacerdotes ajoelharam-se no mesmo instante para agradecer aos deuses pela chuva que viria, mas o faraó apenas olhou intrigado pela janela: havia algo de muito estranho acontecendo em suas terras.

Chamou o comandante de seu exército e ordenou que sua guarda de elite fosse até o local atingido pelo raio e avisou que ele próprio iria com eles. Houve um burburinho na sala e ninguém entendeu o que se passava. "Pode não ser nada além de minha imaginação, mas pelo menos me livrarei por alguns instantes desse bando de lamentadores!", pensou.

Ao chegarem próximo do local onde o suposto raio deveria ter caído, todos, incluindo o faraó, deixaram-se cair boquiabertos: não havia ali nenhuma árvore partida, nenhuma pedra chamuscada, nem sequer uma única grama queimada. Havia, sim, uma enorme esfera cintilante pairando no ar, circundada por raios azuis tremulantes.

O sacerdote do faraó, que o acompanhava em todas as suas saídas do palácio, começou imediatamente a fazer todas as preces de que se lembrava. O faraó, no entanto, apenas levantou-se e caminhou até aquela misteriosa aparição e esticou a mão para tocá-la, no que foi de pronto impedido pelo comandante de seu exército. Se alguém tivesse que arriscar a vida para descobrir o que era aquilo, a última pessoa a fazer isso deveria ser o faraó.

No mesmo instante em que o comandante tocou a esfera, todos ali reunidos tiveram o vislumbre de um outro mundo, completamente diferente do local e da época em que viviam. Era um mundo extremamente colorido, ricamente povoado, com pirâmides de todas as formas e pessoas de todos os tipos. A visão não durou mais do que poucos segundos, mas foi o suficiente para fascinar o faraó e congelar de medo todas as outras pessoas que o acompanhavam.

Assim que o transe passageiro terminou, a esfera de luz havia sumido e no lugar dela estava nada menos que um deus! Um deus-camundongo, nunca antes mencionado na história do Egito. Todos, exceto o faraó, ajoelharam-se diante do novo deus porque não sabiam ao certo que tipo de deus era aquele.

O deus-camundongo olhou sem jeito para o faraó e fez uma saudação estranha, balançando a mão direita de um lado para o outro, com a palma estendida para frente. O faraó, sem saber o que fazer, devolveu o cumprimento engraçado. O deus-camundongo sorriu e começou a falar na língua dos deuses, mas o faraó, ainda que fosse ele próprio um deus também, não compreendeu nada.

O sacerdote, percebendo que não havia perigo iminente, levantou-se e tentou conversar com o novo deus, mas também não compreendeu uma palavra sequer do que dizia o ilustre visitante. Frustrado, o novo deus começou então a fazer um ritual mágico com sua estranha coroa preta. Todos olharam perplexos quando o deus-camundongo começou a tirar as mais variadas coisas de dentro de sua coroa: pombas, cartas, lenços e até mesmo um estranho animal pequeno e peludo com orelhas compridas. Quanto mais o novo deus demonstrava o seu poder, mais medo causava no exército do faraó.

O deus-camundongo estendeu o pequeno animal para o faraó e, assim que este o aninhou em seus braços, o animal se transformou em minúsculos raios coloridos que dançaram em torno de seu corpo. Todos que acompanhavam o faraó deram um passo para trás, assustados, mas o faraó, ao invés disso, começou a sorrir como a criança que ainda era e seu sorriso se transformou em riso e logo o faraó estava gargalhando como nunca alguém o havia visto.

Nesse mesmo instante, começou a chover.

O sacertode abriu seus braços e, olhando para o céu, começou a agradecer aos deuses pela benção da água.

O comandante do exército considerou que aquele deus-camundongo deveria ser o deus da chuva e o reverenciou.

O faraó, porém, foi o único que de fato entendeu o que aquele deus estava fazendo ali: ele era o deus da diversão. De que adiantava todas as terras, todas as jóias, todo o poder de um deus se não houvesse um pouco de diversão para tornar a vida e o além-vida mais prazeroso? Diversão era, de fato, o único poder capaz de trazer o equilíbrio de um reino de volta.

O deus-camundongo entregou uma chave com o formato de suas orelhas redondas ao faraó, fez outra reverência engraçada dobrando seu corpo para frente, sorriu e desapareceu diante de todos, como se nunca houvesse estado ali.

Nos dias que se seguiram, a paz retornou ao Egito, o Nilo finalmente encheu-se e os preparativos para a Festa de Opet começaram. Todos no reino pareciam trabalhar com mais alegria e o faraó ficou satisfeito com isso.

Como todos no palácio pareciam ocupados demais para notar sua ausência, o faraó dirigiu-se só até o local onde estava sendo construída sua futura tumba. Falou com encarregado pela obra e, dizem, há até hoje no Egito uma pequena pirâmide escondida que possui tobogãs no lugar de corredores e pinturas de um deus-camundongo em suas paredes. Alguns acreditam que nela esteja sepultado um faraó feliz, outros dizem que o faraó-menino apenas desapareceu ao abrir uma porta com sua chave de orelhinhas e foi para um além-vida diferente, um lugar colorido e divertido onde uma criança podia ser, afinal, apenas uma criança.

Contudo, essa história perdeu-se no tempo e apenas poucos a conhecem. A verdade, meus caros, é que o espírito do faraó-menino vive até hoje, mas sua pirâmide não está mais onde se supõe que ela deveria estar. No momento em que o faraó finalmente encontrou uma fechadura adequada para sua pequena chave, a magia do deus-camundongo fez-se novamente presente e levou o faraó e sua pirâmide para um passeio no espaço-tempo. Para onde e quando, somente sua imaginação, caro leitor, pode lhe dizer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário