quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Diário insano

Segunda-feira.
Chego em casa depois de um dia cansativo. Esse silêncio, essa solidão, ao mesmo tempo me acalmam e me angustiam. Me jogo no sofá e penso em como minha vida está se passando sem mim. Hoje, no hospital, operei um homem envolvido em um assalto à mão armada. É revoltante saber que, por juramento, sou obrigada a salvar a vida de pessoas que não merecem viver. Pior ainda é saber que pessoas inocentes são feridas por gente covarde, que não pensa duas vezes em usar a força bruta para conseguir o que quer. Me pergunto por que ainda existem pessoas que aceitam isso como algo que não se pode mudar. Olho o retrato na parede. Minha mãe. Me lembro como se fosse hoje: ela sendo espancada por meu pai alcoólatra e chorando para que eu saísse dali para não correr o risco de apanhar também. Minha vontade era fazer alguma coisa para ajudá-la, mas o que uma criança de 6 anos podia fazer contra um covarde com o dobro do tamanho dela? Nunca entendi porque minha mãe demorou tanto para deixá-lo. Não sei dizer se era por medo, por falta de amor próprio, ou porque talvez ela imaginasse que sem ele as coisas seriam ainda piores para nós duas. Uma mulher e uma criança abandonadas à própria sorte, sem casa, sem comida, sem nada. Ás vezes me pergunto se ela o aguentou por tanto tempo, sacrificando a própria felicidade, por mim, para me proteger. Outras vezes penso que qualquer outra atitude mais corajosa, por mais difícil que fosse, talvez pudesse ter tornado tudo completamente diferente, talvez até menos doloroso.

Terça-feira
Dia de terapia. Já faz algum tempo que percebi que precisava de ajuda profissional. Essa angústia sufocante não pode ser apenas stress por causa do trabalho. Tenho pensando bastante sobre o sentido da vida, sobre a morte, sobre relações humanas completamente desgastadas. Minha terapeuta acredita que quando estamos próximos da morte sempre pensamos em coisas como Deus, família e arrependimentos. Não tenho certeza de que uma pessoa possa mesmo pensar em tudo isso em tão pouco tempo. Ainda mais porque esses são assuntos sobre os quais eu penso todos os dias de minha vida e que nunca consegui entender completamente. Vejo a morte de perto todos os dias em meu trabalho. Sinto que para alguns ela é terrivelmente dolorosa, mas para outros ela é um grande alívio. Se pudesse escolher, gostaria que para mim ela fosse calorosa, com aquela sensação de dever cumprido que não tenho conseguido encontrar ultimamente.

Quarta-feira
Quando eu era pequena, minha mãe costumava me levar à igreja para conversar com os anjos. Isso foi muito antes de meu pai se tornar um alcoólatra. Naquela época eu ainda acreditava que o mundo era um lugar perfeito e que todas as pessoas eram felizes. Deus era um homem bom e cuidava com carinho de todos os seus filhos.

Hoje, voltando do hospital, vi o pastor da igreja que eu costuma frequentar cercado de prostitutas. E não, ele não estava abençoando nenhuma delas, nem ouvindo suas confissões. Para ser sincera, creio até mesmo que ele estava, na verdade, ajudando-as a cometer ainda mais pecados.

Cada dia que se passa, tenho mais convicção de que o inferno é aqui.

Quinta-feira
Outro dia daqueles. Tentei conseguir um empréstimo no banco para abrir minha própria clínica. O gerente me disse que não podia aprovar meu crédito, pois só pode fazer esse tipo de transação com clientes com conta há mais de 10 anos. Creio que vou ter que esperar mais 3 longos anos para conseguir sair daquele hospital público deprimente e conseguir trabalhar com algo que me dê algum prazer emocional. Me pergunto se minha sanidade aguentará tanto tempo.

Sexta-feira
Finalmente meu dia de folga. Me permito acordar mais tarde, tomar um banho demorado e brincar um pouco com o Lupy. Acho que ele sente minha falta quando estou de plantão, mas ainda assim é o melhor companheiro que se pode ter. Parece ser o único que fica realmente feliz em me ver, não importa o estado lamentável em que eu me encontre. Por que os homens não podem aprender com os animais? O mundo seria tão menos complicado...

Ligo a TV. Político investigado por fraude. Terremoto deixa milhares de pessoas desabrigadas. Homem-bomba mata 15 pessoas. Policial esfaqueia mulher por ciúmes.

Desligo a TV. É meu dia de folga, não quero passar meu tempo livre pensando em desgraças. Acho que vou ao orfanato visitar as criancinhas. Queria poder adotar uma, mas com essa vida corrida acho que não seria justo com ela ter uma mãe que passa mais tempo no trabalho do que com ela. De qualquer forma, vou lá levar e receber um pouco de carinho. Quem sabe esse pouco que tenho a oferecer seja justamente a diferença que vai tornar essas crianças pessoas mais capazes de acreditar na felicidade.

À noite, recebo uma ligação. É o Ronaldo, um dos poucos amigos de verdade que tenho. Ele diz que ando ausente, que está com saudades e que quer conversar. Saímos para dar uma volta, mas a verdade é que não ando muito inspirada para conversas banais. Ele percebe isso, se cala e me abraça. Me olha com aquela cara de "qual é o problema?" e eu nem sequer consigo olhar de volta. Devo estar realmente muito mal. Ele é meu melhor amigo e mesmo ao lado dele me sinto só.

Sábado
Dia tranquilo no hospital. Definitivamente muito fora do normal para um fim-de-semana, mas é claro que não estou reclamando disso. Aproveito para fazer algumas pesquisas na internet. Assim que cheguei aqui, fiquei sabendo do caso de uma menina que se suicidou por causa de uma briga com o namorado. Esse é um assunto que me intriga bastante: amores e suicídios. Um poema na internet indaga se o suicido não é uma forma corajosa de se chegar mais rápido a um lugar melhor. Me pergunto se esse escritor também estava decepcionado com o mundo ao seu redor. Me sinto tão só, mas alguma coisa dentro de mim me impede de procurar relacionamentos mais sérios. Não que eu não queira um amor de verdade, tenho certeza de que quero, mas me tem sido tão difícil acreditar nas pessoas. Toda vez que algum dos meus namoros começa a ficar mais sério eu entro em pânico e termino o relacionamento. Fico pensando em meus pais. Em quanto eles eram (ou pareciam) felizes antes daquele maldito acidente mudar tudo. Meu pai perdeu o movimento da mão direita no acidente de carro. Perdeu muito mais que isso. Perdeu seu emprego, sua dignidade, seu amor-próprio. Arruinou a vida da minha mãe e quase acabou com a minha. E tudo por causa de um maldito adolescente drogado dirigindo na contramão! Pensei que me tornando médica eu seria capaz de ajudar pessoas como meu pai a recuperar seus movimentos e sua autoestima, mas ao invés disso estou aqui nesse hospital maldito cuidando justamente de drogados, bandidos e todo esse tipo de gente que merecia morrer. Tenho medo de me decepcionar com as pessoas como me decepcionei com meu pai. Tenho medo de não ter coragem de mudar, como minha mãe não teve. Quero mais do que esse mundo tão pequeno em que vivo agora.

Domingo
Surtei. Sim, entrei em pânico total quando vi Roberto ali sangrando na maca do hospital. Meu último namorado. O melhor de todos. O mais carinhoso, o mais compreensível, o melhor companheiro que se pode ter. Mas é claro que eu tinha que ir lá e estragar tudo. O ouvi conversando baixinho com uma amiga, dizendo que estava pensando em me pedir em casamento. É claro que gelei de medo e terminei tudo assim, sem mais nem menos, sem ao menos lhe dar uma explicação. Ele ainda foi bem paciente e tentou conversar comigo, me fazer mudar, voltar atrás, mas a simples ideia de me tornar emocionalmente dependente de alguém para o resto da minha vida me deixou completamente apavorada. Disse que podíamos ser amigos. Ele respondeu que me amava demais para ser apenas um amigo, mas que se eu tinha tomado essa decisão era porque no fundo eu provavelmente seria mais feliz sem ele. E foi assim, me desejando felicidade, que ele partiu, com lágrimas nos olhos, sem dizer mais nada. Nunca mais nos vimos. Isso foi há 3 meses.

Agora eu estava ali, diante dele novamente, com sua vida em minhas mãos, me perguntando que raios eu estava fazendo comigo mesma todo aquele tempo. O enfermeiro disse que Roberto tinha sofrido um acidente de moto quando voltava da Praia Rosa. A Praia Rosa. Nosso lugar especial. O lugar do nosso primeiro beijo. Tudo isso veio à tona de uma vez só em minha cabeça naquele momento. Minhas mãos tremiam. Eu precisava fazer uma operação de emergência extremamente complicada, mas não conseguia parar de chorar. Respirei fundo. Enxuguei as lágrimas. Rezei novamente pela primeira vez nos últimos 20 anos. Prometi a Deus que se Roberto saísse vivo daquela mesa de operação eu pararia de sentir pena de mim mesma e me permitiria ser feliz. Mesmo que isso fosse uma tarefa quase impossível. Mesmo que para isso eu precisasse aprender a confiar mais nas pessoas e a acreditar mais em mim mesma. Eu sabia que podia conseguir. Eu TINHA que conseguir.

.............

Terça-feira
Roberto finalmente acordou do coma induzido. Ele passa bem. Ainda não sabe que fui eu quem o operou, mas estou feliz em vê-lo bem.
Minha terapeuta ficou feliz com as decisões que tomei. Vou sair do hospital. Decidi que quero trabalhar com gente que mereça ser tratada. Liguei para o Ronaldo ontem à noite e ele ficou empolgadíssimo com a idéia de criarmos uma ONG para tratar de crianças em situação de risco. Não vou mais fazer terapia, mas vou continuar vendo minha terapeuta todos os dias: ela também vai trabalhar conosco. E por algum motivo que desconheço, até o gerente do banco resolveu colaborar: disse que o banco oferece crédito especial para programas sociais, como forma de criar empatia entre a empresa e a sociedade. Essa semana mesmo começaremos a trabalhar no projeto. Acho que nunca estive tão bem em toda minha vida. Parar de reclamar e fazer acontecer. Essa é a maneira de certa de ser feliz. Quando vamos em busca do que queremos, o universo inteiro conspira a nosso favor.

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto. Está bem escrito, num português bem claro. Achei o final alternativo mais interessante que esse.

    Notei semelhanças entre a protagonista e uma "amiga" minha da faculdade.

    "Toda vez que algum dos meus namoros começa a ficar mais sério eu entro em pânico e termino o relacionamento".
    .
    Acontece com muitas mulheres. Mas imagino que costume acontecer com maior frequência antes do início do relacionamento do que durante ele, porque o momento mais crítico, isto é, quando as decisões são de maior risco, ocorre antes do namoro propriamente dito, a menos que os relacionamentos da personagem sejam tão superficiais que nem sequer exista um momento de tensão antes deles.

    "Tenho medo de me decepcionar com as pessoas como me decepcionei com meu pai. Tenho medo de não ter coragem de mudar, como minha mãe não teve. Quero mais do que esse mundo tão pequeno em que vivo agora".

    "[...] a simples ideia de me tornar emocionalmente dependente de alguém para o resto da minha vida me deixou completamente apavorada [...]".

    Se a personagem quer mudar o seu mundo, vai ter de correr riscos e vai sofrer, não existe outra forma. Todo mundo sofre. Eu que o diga... Só que quanto maior a chance de sofrer, maior o retorno. Na maioria das vezes nós nos ferramos, porque nossas expectativas estão sempre acima das possibilidades ou representam a "situação perfeita", cuja probabilidade de acontecer é ínfima.

    "Prometi a Deus que se Roberto saísse vivo daquela mesa de operação eu pararia de sentir pena de mim mesma e me permitiria ser feliz".

    Essa deve ser uma diferença entre homens e mulheres. Acho que homens não sentiriam pena de si mesmos. Sentiriam outra coisa. Eu mesmo nunca senti pena.

    A autora me perguntou o que os homens sentiriam... Eu disse que o homem sentiria outra coisa justamente porque não sabia direito o que era. Mas parei para pensar um pouco e acho que cheguei a uma boa hipótese.

    A mulher é o sexo passivo, então ela vê a si mesma como alvo da ação, não como executora da ação. Sente pena de si mesma como se sua situação não fosse decorrente de suas próprias atitudes, mas sim do que os outros fazem ou deixam de fazer para/por ela (o que é verdade, parcialmente). Eu sei que a personagem sabe que precisa mudar, mas a escolha da palavra pena revela a postura passiva que prepondera no seu subconsciente até então, que é o que ela quer mudar, porém isso leva tempo. "Saber que tem de mudar" é uma coisa; "mudar" efetivamente é outra.

    O homem é o sexo ativo, então ele vê a si mesmo como responsável por tudo que lhe acontece. Dificilmente seu subconsciente colocará outras pessoas ou coisas como causa principal do que lhe acontece. Assim, ele não deve sentir pena de si mesmo, mas sim frustração por ter tomado a decisão errada (afinal a culpa sempre é dele), ou ansiedade e inquietação para que ele aja, mude, corra atrás.


    Leo.

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